sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Os manuais da cegueira

É sabido que qualquer literatura ajuda a suprir uma necessidade num dado momento, ou num certo campo. E por literatura entendo tudo o que se elabore como texto a ser ouvido, lido, em letra de forma ou como sequência de imagens. Conselhos, também são literatura. Estamos, quase sempre, em busca de respostas, de conhecimento mais especializado divulgado por quem, por experiência própria, por capacidade em lidar com situações extremas, nos pode fazer participar em experiências que não poderemos viver. A vida é muito curta para podermos vivê-las todas. A nossa capacidade de associação pode, assim, valer-se de um romance, de um poema, de uma canção, de um filme, de uma conversa com um amigo ou com um profissional, para obter conhecimentos que de outro modo ficariam ignorados.

É sabido, também, que andamos sempre em busca de protecção. E a verdade universal parece proteger-nos contra a insegurança, a perplexidade, a agressividade da sociedade liberal, já que milhões de pessoas juntas não podem estar enganadas. Só que esta verdade consensual e colectiva não é, forçosamente, a verdade de que necessitamos. É a verdade do rebanho. E o rebanho oferece protecção. Daí, o êxito das religiões.

Mas, hoje, vivemos numa época de enfraquecimento das religiões. Depois de termos sido condicionados massivamente a procurar a felicidade obedecendo a preceitos religiosos, hoje estamos perante a oferta da libertação dos padrões como forma de lá chegar. O enfraquecimento deve-se, muitas vezes, ao facto dos mandamentos morais ameaçarem, em vez de consolarem, condenarem, em vez de entenderem, elaborarem uma consciência de culpabilização em que se moldam grande parte dos princípios que deveriam ser representativos da liberdade. É este paradoxo que a chamada "indústria" de auto-ajuda explora.
Escrevi "indústria" porque acho que é de "consumo" que estou a tratar: existe uma necessidade, a do indivíduo lançado às feras, perplexo perante a complexidade dos problemas que o afectam, sem resposta para as contrariedades, e, em vez de o "ensinarem a pescar", dão-lhe (ou vendem-lhe, mais precisamente) o peixe. Dá-se-lhe aquilo que ele pode comprar.

É assim que funciona uma sociedade ultra-liberal: a publicidade diz-nos exactamente do que é que precisamos, a indústria coloca-o no mercado, o indivíduo consome, gera-se lucro, e toda a gente fica satisfeita porque o mercado funciona. Não se coloca no mercado o que as pessoas não querem comprar; não se coloca no mercado o que é complexo, difícil de entender: para isso teria de se dar conhecimento e informação às pessoas; não se coloca no mercado o que é saudável, teria custos incomportáveis. Coloca-se no mercado o que é vendável. Ensinar as pessoas a pescar não dá lucro: quem pesca, já não compra peixe.

Mas as pessoas não são todas abúlicas. E, por isso, não se consegue vender aquilo em que as pessoas, muito simplesmente, não acreditem. Já viram um vigarista antipático a convencer-vos de uma verdade a que nos oponhamos? Claro que não. Vigarista que se preze tem de ser simpático. E se não conseguir convencer-nos, dá-nos a volta com as verdades que queremos ouvir. É assim na televisão comercial, é assim na publicidade, é assim na literatura dita de auto-ajuda, na comunicação social em geral. Porque se dirije ao maior número possível de "clientes", tem de estar ao nível cultural e emocional da maior parte da massa consumidora: dos 8 aos 88 anos. Entenderam, claro. Não quero dizer que se dirije a um intelecto de oito anos, com o pretexto gritante de que não estamos todos ao mesmo nível de evolução, nivelando por baixo, porque estaria a agredir grande parte dos meus leitores. Concepções contrárias à da maioria são geralmente vistas como uma agressão. E quem se sente agredido, muda-se. Para outro canal, para outro blog, não compra o meu produto, fecha-se nas suas defesas, dispara rajadas de Kalashnikov. Quando adoptamos posturas críticas que contrariam um sentimento comum, corremos o risco de sermos vistos como arrogantes, pedantes, invejosos, desmancha-prazeres... "do contra", mensageiros da desgraça, bruxos!
Hoje, no âmbito do que "queremos ler, ouvir", assiste-se à proliferação de "conselhos" que nos permitem sermos condescendentes connosco, marimbando nas recriminações, ao permitirem que novas formas de ver as coisas tomem o lugar de valores e princípios inculcados por conceitos culturais, familiares ou religiosos, sem a mínima preocupação com os reflexos que isso possa ter na interacção com os outros, ao sabor da filosofia "que se lixem os outros" que estiver na moda no momento: apologia do “umbigocentrismo”, do desprezo total pelos limites impostos pela consciência, e repetições verbais e mentais de falácias impraticáveis, pela mera busca da sensação de bem estar.

Theodor Adorno & Max Horkheimer chamaram a atenção para o fenómeno, no contexto do qual se fabrica, segundo eles, um estilo de conduta para os indivíduos que, submetidos à disciplina do racionalismo moderno, necessitam que se lhes diga como cuidar do seu corpo, fazer amigos e valorizar a sua personalidade. Para os autores, o capitalismo enseja o surgimento de movimentos de massa que condicionam as rotinas cotidianas, penetrando no modo como os indivíduos planeiam os seus compromissos, as pessoas sorriem para as outras, escolhem as palavras da conversa do dia a dia e estruturam a sua vida interior, numa tentativa de fazer de si mesmas "um aparelho eficiente e que corresponda, mesmo nos mais profundos impulsos instintivos, ao modelo apresentado pela indústria cultural".

A modernidade desintegrou as representações colectivas e simbolismos comuns que recomendavam a salvação do eu na fusão dos propósitos pessoais com os propósitos da comunidade. O resultado desse processo foi a criação de uma sociedade de indivíduos livres, mas, também, de um conjunto de problemas pessoais que tornou profundamente problemática essa liberdade.
Esta prática começou a vulgarizar-se através dos meios de comunicação, ao difundirem um saber de cunho paracientífico, caracterizado nos catecismos sobre como conduzir a vida, nas matérias sobre o potencial humano, nos testes de auto-conhecimento e nos desenhos de perfis psicológicos. As respostas para os problemas de identidade, os recursos para descobrir e explorar os segredos da alma, do corpo e do sexo, as fórmulas para ter sucesso na vida e relacionar-se com as pessoas foram-se tornando mercadoria de consumo de massa, conforme demonstra bastante bem o caso dos livros de auto-ajuda e de banalização primária de conceitos. E há para todos os gostos: desenvolver capacidades objectivas, conseguir sucesso nos negócios, comunicar com as pessoas, conservar o marido, obter auto-estima, saber envelhecer, vencer a depressão, viver em plenitude... E têm a ver, essencialmente, com as dificuldades, surgidas com a abstracção social ocorrida na modernidade, com que o homem comum do nosso tempo convive consigo próprio. Mas também com a explosão das referências morais, explorando a personalidade, superando a descrença em nós mesmos, e levar-nos a constituirmos-nos legitimamente como sujeitos de uma conduta na sociedade.

A base é sempre a mesma, como nos métodos religiosos do passado: a salvação é um produto absolutamente individual, que se alcança a partir da própria força do indivíduo. Porém, é necessária uma abordagem nova para o sentimento moderno de que, exactamente por vivermos numa sociedade igualitária, a ideia de que a nossa angústia íntima é desprovida de sentido, é intolerável, e tem a ver com a ansiedade gerada pela ideia de que somos todos iguais, e, portanto, cada um de nós é o único responsável pela respectiva infelicidade. Negando o mundo, negando as pressões sociais, as pressões económicas, as desigualdades gritantes...

Durkheim escreveu que os modernos resolveram correr o risco que advém da promoção de um método individual, subjectivo, que leva a moral a ser apenas o sentimento que cada um de nós tenha. A multiplicação desordenada da experiência e a restrição dos controles morais, provocam em muitos uma desorientação individual diante do mundo, e uma dificuldade em ordenar a vida por conta própria, e desencadeia uma série de questionamentos a que não poderemos responder sem uma ou outra forma de ajuda: "as sociedades que exigem do indivíduo um grau de especialização mais ou menos alto, determinam, pela sua própria natureza, que ele negligencie, ou deixe sem uso, uma grande quantidade de possibilidades existenciais, [conheça] vidas que ele não viverá, papéis que não exercerá, experiências que não chegará a viver e ocasiões que perderá". A isto, os manuais da cegueira respondem: "O indivíduo não deve preocupar-se em mudar a realidade, mas sim a experiência que tem dela ... porque a experiência pode ser manipulada interiormente e, portanto, autocontrolada".

O que existe nos escaparates pode ser, por si só, considerado um sintoma: ajuda pela hipnose, pela auto-hipnose, pela auto-análise e pela meditação; ajuda através da arte curativa dos chineses; auto-ajuda para vencer a ansiedade, a angústia, a dependência de drogas, a violência urbana, o stress e todas as formas de doenças sociais; auto-ajuda pelo tarot; todas as formas de psicoterapia centradas no corpo; todas as técnicas de auto-sobrevivência; auto-ajuda pela cura quântica ou através do Campo de Energia Humana, etc. Isto é o gosto comum?

Li, não sei quando, nem onde, uma entrevista do António Lobo Antunes, em que ele dizia que o papel, a função do escritor, é de fazer ver.

Escritores, precisam-se.


* Leiam Gilles Lipovetsky, "A ERA DO VAZIO: Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo", "O CREPÚSCULO DO DEVER", "A FELICIDADE PARADOXAL". Tudo à venda na FNAC.

* Leiam "4 ARGUMENTOS PARA ACABAR COM A TELEVISÃO", de Jerry Mander. Ainda há pouco tempo o comprei, pela 4ª vez, na Ler Devagar.

* Frequentem: "Literatura de auto-ajuda e modos de subjetivação na cultura de massa contemporânea", de Francisco Rüdiger, em http://www.ufpe.br/eso/revista6/rudiger.html
e
http://inquilinosdoalem.blogspot.com/2007/10/literatura-de-auto-ajuda.html

* Abram os olhos.

* Sejam felizes.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Do conhecimento inútil I

A invectiva: ó fulano (não vou começar a identificar personagens, sobretudo se estiverem no poder, forem inspectores do fisco, psiquiatras ou mecânicos de automóveis, a diferentes níveis de perigosidade e de sentido de humor) ó fulano, dizia eu, você, que tem o maior conhecimento inútil que eu conheça, diga-me lá por que é que..., será que é para levar a sério? Será para ofender? Ou é simplesmente inveja?

Eu acho que o conhecimento inútil é um ramo abastardado da ciência, da memória, da cusquice, ou de todos eles em conjunto. E é provável que se desenvolva por geração espontânea, como as nuvens de condensação vertical e muito localizadas, provenientes do arrefecimento do ar húmido que se eleva na atmosfera. Aparecem muito depressa, muitas vezes no litoral, sobre uma baía, mas raramente precipitam.
Quando não se sabia por que chovia, faiscava ou trovejava, o pessoal temia que o céu lhe caísse na cabeça, e refugiou-se nas cavernas. Ao primeiro tremor de terra, o tecto (da caverna) caiu-lhes em cima e eles começaram a perceber: é conhecimento de experiência feito. Sentido na pele. Empírico.

Para que serve distinguir umas nuvens das outras? Acho que é bom de ver: para saber que roupa vestir quando se sai de casa. Se forem uns cumulusnimbos, altos, multiformes, com zonas cinzento escuro, o mais provável é vir trovoada e bátegas de água. Se forem uns cirrozitos, só provocam sombra, chateiam que estiver na praia, e fica por aí.
A direcção do vento também traz informações fundamentais: se estiver de norte e as nuvens estiverem a sul, podemos sair de corpinho bem feito, que quem leva com a chuva é o pessoal de Sintra, e arredores. Como sempre, aliás. Já a orientação de sul, dizem as estatísticas e a sabedoria milenar dos pescadores que é chuva garantida. Quem viver no litoral, basta olhar para o estacionamento dos barcos de pesca. Se estiverem todos em terra, é porque vem borrasca. Ou porque não vai haver desembarque de produtos ilícitos ao largo (para quem serve, é bom de saber que pode haver carência e os preços de mercado vão disparar).
Quando os carros de patrulha da GNR (ou da PSP) estão todos no estacionamento da esquadra, também pode ser sinal de chuva. Ou porque a vila está cheia de turistas, que podem fazer o que quiserem, portanto não vale a pena por o nariz de fora só para arranjar sarilhos.

O conhecimento inútil não conhece limites. Tive um cunhado (apesar de, ao que me disseram, os cunhados serem para toda a vida, ao contrário das mulhers/esposas) que conhecia todas as rotas aéreas e respectivos horários, em todos os aeroportos europeus: nem que fosse a Baku, passando por Esmirna e Tunis, para chegar de Frankfurt a Lisboa, ele não ficava mais de uma hora em trânsito: é preciso é andar. Nem que seja para trás. Eu também já fui do Rio para Frankfurt, em voo nocturno, para depois apanhar outro voo de 3 ou 4 horas para Lisboa, só para abichar um upgrade para executiva. Daqui se depreende que o conhecimento inútil só o é para os outros, porque a nós, serve-nos à perfeição. Há quem conheça a distribuição dos lugares num avião pelo modelo do dito: importante para quem mede mais de um metro e oitenta.
O conhecimento inútil é bom para resistirmos à chicoespertice dos outros. Mas é mau no que toca a gestão de conflitos: o chicoesperto não gosta que se lhe destape a careca e pode reagir de forma intempestiva. Lá se vão os brandos costumes. Daqui se infere que o conhecimento inútil não é universal, nem incita à diplomacia. É bom ter noções de artes marciais. Quem levanta cabelo tem de saber que as posições são para levar até ao fim, seja com um(a) abusador(a), um polícia ou um comerciante. E é bom conhecer os delitos que não acarretam prisão preventiva, para poder resistir legitimamente ao abuso da autoridade: uma vez trancafiados, abusivamente, numa cela do governo civil, mais vale relaxar e esperar pela soltura no dia seguinte. Quem nunca leu a constituição da república portuguesa não sabe que o direito de resistência à autoridade aí está consignado. É uma questão de boa prática democrática.

Mas, perguntarão alguns, o conhecimento inútil é compatível com a chicospertice? Raramente o é, já que se trata de uma arma de defesa e não de arremesso. Esta noção é muito importante na medida em que, muitas vezes, o conhecimento inútil é confundido com cagança, pesporrência, ou até, teimosia.

As mesmas causas produzindo, muitas vezes, os mesmos efeitos, uma boa base de dados permite elaborar e especular com algum fundamento, e reduz fortemente a ansiedade. Não confundir, como acontece muitas vezes, com adivinhação. Se bem que eu ache que as boas pitonisas e outros cartomantes têm, obrigatoriamente, de ter algum jeitinho destes para juntar factos e malabarar* com eles. Psicanalistas, também. É tudo uma questão de narrativa. Quem quiser contar uma grande mentira, tem de conhecer muitos factos. Ou a mentira não terá bases suficientes para ser credível. Ora, mentira que não seja credível, não é uma mentira, em bom rigor lexical, mas sim uma tentativa patética de enganar alguém.

Hei-de voltar ao assunto. Interpretem isto como promessa, ou ameaça, à escolha...


* procurei a palavra em vários dicionários, e, qual não é o meu espanto, não encontrei. Mas não é óbvio? Se um prestidigitador prestidigita, porque é que um malabarista não malabara? Em francês, está na cara: un jongleur, jongle! Se bem que a palavra portuguesa e a francesa correspondam exactamente à mesma coisa, a francesa é muito menos ofensiva. Dependendo de quem se trate, pode ser, até, apologética.

sábado, 19 de setembro de 2009

Verão II

O clima tem destes desencontros com o calendário: depois da fuga dos bárbaros*, o verão regressa com dias de calmaria saariana e temperaturas primaveris. Preenchidas as depressões, o vento mudou-se para outras latitudes e a praia apetece. Pelo menos, a esplanada, que é areia free. Mesmo assim, há uns indefectíveis, fóbicos de ajuntamentos, que desafiam algumas leis do universo, só para terem o quinhão de oxigénio só para eles. Dos outros não reza a história. Gente feliz não desperta curiosidade. Sem desequilíbrios e insatisfações não há motivações. Sem motivação, não há acção. É o que nos ensina a ficção. Rima e é verdade.

Este verão, os portugueses descobriram que o litoral se está a esboroar e que as falésias não são eternas. Nunca foram. Não está na ordem natural das coisas. Mas este tipo de igno
rância militante só indica que o portuga é aventureiro e desafia constantemente a gravidade. O bom senso, também. Quem gosta de gente certinha? Mas desafia-os de uma forma dissimulada, subreptícia, sonsa, até, que isto são muitos anos de cristianismo mesclado de laivos islamitas: quem não quer o melhor de dois mundos? "Faz o que eu digo, mas não faças o que eu faço", sabendo de antemão que é para caminhos ínvios que tal sabedoria nos leva. Orgulhosos, não gostamos de caminhos trilhados, fazendo jus aos versos de Neruda, cantados por Juan Manuel Serrat:

"Todo pasa y todo queda
Pero lo nuestro es pasar
Pasar haciendo camino
Camino sobre la mar
Nunca perseguí la gloria

Ni dejar la memoria
De los hombres mi canción
Yo amo los mundos sutiles
Ingrávidos y gentiles
Como pompas de jabón
Me gusta verlos pintarse
De Sol y grana volar
Bajo el cielo azul temblar
Subitamente y quebrarse

Nunca perseguí la gloria
Caminante son tus huellas el camino y nada más
Caminante no hay camino, se hace camino al andar
Al andar, se hace camino, y al volver la vista atrás
Se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar
Caminante no hay camino, sino estelas en la mar (...)"

Nas palavras de outro "poeta": ... segura e firme não está nenhuma pedra. (Saramago, A Jangada de Pedra, pág. 12)

* povos no norte e do leste que não foram romanizados. Muito menos islamizados.



terça-feira, 15 de setembro de 2009

Verão I

Só se fala do verão quando ele não corresponde às expectativas (vide Hegel e Deleuze: a máquina que funciona é a que está avariada), mas também quando vai terminar. Os sinais disso são mais que muitos e há quem já tenha saudades. Para mim, o verão representa uns cinco a seis meses sem usar meias ou peúgas, quatro a seis semanas de invasões bárbaras, e a lembrança sistemática do privilégio que é viver à beira mar todo o resto do ano. De praia, não gosto. Vivo suficientemente perto dela para gozar da minha dose de iodo, e assumo o risco de ficar só com as extremidades bronzeadas. Estar a tostar, que nem frango no espeto, agora para cima, depois para baixo, não é coisa que me seduza. Até me repugna. Não exibo suficientemente o resto do corpo para me constranger com a palidez decorrente.

As invasões bárbaras fazem a felicidade do comércio e acantonam as forças da ordem nas casernas, que turista não é para se contrariar: o comércio não ficaria feliz. Aos bárbaros*, vindos do norte e do leste, tudo é permitido: circulam de carro onde o indígena circula a pé ou de bicicleta, transformam ruas e praças em armazéns de sucata, geram filas de espera onde elas não costumam existir, transformam os ecopontos em monturos inestéticos. E, muito pior do que tudo isso, trazem com eles a ganância do comércio (mais ainda) e o aumento dos preços ao consumidor, espécie de taxa que nos cai em cima a meio do ano, e que volta a mudar no ano seguinte. Para cima, que para trás, mija a burra.

O bárbaro não se livra, porém, dos hábitos que o caracterizam no resto do ano. O problema é que ele não está familiarizado com as infraestruturas locais e serve-se como quer e como pode. Deve achar que é exótico.

* povos que nunca foram romanizados. E muito menos islamizados.


segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O Cinema I

O cinema é parte integrante da cultura do século XX. E do XXI também, já agora, porque ainda não há sinais de falência. Transformações, sim. O cinema mudou muito com o digital, como tudo o resto, aliás, tanto na forma, como nos conteúdos, e, sobretudo, na comunicação com o público. Não quero voltar à velha pecha do encanto da sala escura dos "cinéfilos": há muito tempo que não sinto o menor encanto ou atracção por salas cada vez mais pequenas, onde a legislação não é respeitada quanto à distância entre as filas de cadeiras (as minhas pernas não cabem na maior parte das salas (que saudades do balcão do Império...!), com estofos desconfortáveis (olha as salas do Paulo Branco!), onde paira o cheiro insuportavelmente doce das pipocas (as do Paulo Branco são “pipocas free”, salve-se isso), onde a banda sonora é pontuada por vigorosas mastigadelas, e, sobretudo, onde já não há lugares marcados.


Nunca achei que gostar de ir ao cinema era equivalente a gostar de cinema: um não funciona sem o outro, mas a confusão termina aí. Ir ao cinema é um acto profundamente social (há quem vá à missa) que morreu quando acabou o santo sacrifício do intervalo para se fumar um cigarro e ver, e ser visto, pelo resto da companhia. E que simpático era encontrar um(a) amigo(a), ou mesmo um(a) conhecido(a): dava direito a uns minutos de prosa, e quiçá uma combinação para continuar o serão. O mistério da sala escura desvaneceu-se-me completamente, há mais de 20 anos, num cinema de Nova-Iorque, onde se vê o filme com as luzes da sala acesas, para prevenir roubos e assassinatos.


Não me vou atardar sobre as transformações tecnológicas, apesar delas estarem na génese da transformação do contacto do cinema com o público. Mal acomparado, eu acho que restringir o cinema à sala e ao grande écran, é mais ou menos como limitar o acesso ao livro à biblioteca pública.

Na sala, a distância da cadeira ao écran é uma distância reverente, assim como a posição sentada a olhar para cima, também é uma posição reverente, o que transforma a imagem no grande écran numa entidade distante, impalpável, superior, inacessível e intocável. Eu acho que era esta sensação que fazia da ida ao cinema uma experiência religiosa: grande parte do mistério residia aí. A metáfora não se limita a isso: toda a indústria repousa sobre essa distância e respeito do público pelos deuses e semi-deuses do panteão: produtores, realizadores e actores. O endeusamento processa-se nas fofocas, e respectiva indústria, na cusquice e no concílio anual dos óscares, e outras premiações, que são, sobretudo, uma grande operação de marketing.


A televisão estragou um pouco esta reverência: ávida de audiências, ela banaliza a exibição de certos filmes, alterando-lhes, muitas vezes, a forma e o ritmo (estou a referir-me ao “pan and scan” e aos intervalos), dando assim cabo da fama da intocabilidade. Os filmes não foram feitos para serem vistos assim. E a televisão acabou, também, por influenciar a forma como certos realizadores pensavam o cinema que faziam: abuso de grandes planos e formato “clássico”, 4:3, mais conhecido como “quadrado”, já que os televisores não tinham formato panorâmico, para não sofrerem as amputações do “pan and scan”. Aconteceu com Sidney Pollack, falecido no ano passado, que só regressou a formatos panorâmicos no seu último filme The Interpreter, o que não fazia desde Out of Africa. A tecnologia também está a mudar na televisão, e os canais por cabo passam os filmes sem intervalo.


Depois vieram as cassetes e os DVDs, os videoclubes, o “pay-per-view” e as cópias piratas, e o acesso do público ao cinema mudou radicalmente. Mas mesmo assim continuava tudo mais ou menos contido dentro das filosofias comerciais das “majors” americanas e suas correias de transmissão pelo mundo fora: viam-se os filmes que era preciso promover, presentes nos catálogos de distribuição.

Então e os outros?


Fora dos catálogos e dos pacotes de DVDs de clássicos e de cinema paralelo, há uma quantidade enorme de filmes que fazem parte da nossa memória, que nos ensinaram uma pipa de coisas, como certas formas de ver o mundo, e que desapareceram, ou se tornaram inacessíveis. Tal como os livros que os editores já não publicam porque demoram muito a escoar, muitos filmes fizeram a sua época e são arrumados em arquivo morto porque já pouco rendem.

Surgiu, então, o Zorro! A internet não é só uma rede de computadores. Por trás deles, ou melhor, na frente deles, está muita gente que considera que, para além das políticas comerciais de editores e distribuidores, existe um mundo que não podemos perder de vista. E, mais uma vez, graças às transformações tecnológicas (codificação digital), toca a publicar “generosamente” tudo (ou quase tudo) o que a indústria nos sonega. É evidente que num mundo sem controle, tudo pode acontecer. Para além desses tesouros desenterrados, também aparecem na net filmes que ainda nem estrearam em sala. Temos pena. Ou não...

O público perdeu a reverência. Os filmes já não são intocáveis. E os editores e distribuidores só se podem queixar da política de avestruz, por não acompanharem, no comércio, a evolução tecnológica. Eu não imagino como é que eles poderão conter o que chamam “pirataria”. No meu entender, este é um conceito terrorista e mentiroso: pirataria acontece quando um produto é duplicado e comercializado sem autorização dos seus proprietários. Baixar um filme na net para o ver, está (mais ou menos) enquadrado dentro das leis europeias da cópia privada. Por isso é que se paga uma taxa destinada a direitos de autor quando se compram materiais virgens de gravação: cassetes, CDs e DVDs. Se em Portugal, ao contrário de muitos outros países europeus, essa taxa não abrange computadores, discos duros, leitores/gravadores de mp3 e/ou mp4, fotocopiadoras e papel de impressão, a culpa não é nossa, é do legislador que não “importou” devidamente as directivas comunitárias. Quem disponibiliza os filmes na net está (abrangentemente) a cultivar a cultura, passe o pleonasma. Quem defende a criminalização, em qualquer circunstância, da cópia de filmes editados em DVD, ou do seu download na net, está a praticar um acto terrorista, ilegal e de lesa-cultura. Entendam-se com o legislador. Eu tenho a certeza de que não nos importamos de pagar mais uns cêntimos no preço de um computador, de um telemóvel e outros aparatos que possibilitem a cópia digital ou analógica, ou mesmo da mensalidade do acesso à internet, para ressarcir os autores por esta forma de divulgação das suas obras. Não acho que seja assim tão difícil.


Falta a questão do PODER. Se é disso que se trata, temos de concordar que “eles” estão a perder o controle. Mais uma vez, temos pena! Ou não...

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Ainda a verdade da mentira

Andava com aquela coisa atravessada, e parecia não querer sair. Agora que foi despejada, podemos voltar à vaca fria.

Aquele joguinho da verdade e da mentira acerca de nós mesmos, pareceu-me uma ideia divertida, à partida. Mas não deu grandes resultados. Acho eu. Dependendo da forma como nos imaginamos, e da plateia de que dispomos, todos nós abrilhantamos, de uma maneira ou de outra, o nosso currículo. Coisas sem a mínima importância transformam-se em função dos interlcutores, e constatamos que eventos que foram, para nós, de grande relevo e emoção, desinteressam por completo os outros. O que, por vezes, se torna uma grande desilusão. É por isso que acho que qualquer biografia é um exercício de ficção: quem conta um conto, acrescenta um ponto. Ou mais. Mas a ficção, ao contrário da realidade, tem de fazer sentido, tem de ser credível para ganhar audiência. Não se criam novos mundos com essa facilidade toda. Continuando agarrado a Orson Welles, para quem uma grande mentira tem de ser construída com muita verdade, vamos lá descascar as minhas nove afirmações e confrontá-las com as (poucas) reacções que receberam. Aqui vai, a pedido de várias famílias.

1. Não é verdade que tenha ido de avião, para outro país, sem bilhete, sem passaporte, nem muda de roupa. Mas não fui porque corria o risco de arranjar um monte de sarilhos, e acagacei-me. Estive dentro do avião, e podia ter ido. E não era um avião qualquer. Tinha a bordo quase todo o governo português da altura (junho de 1975) e grande parte dos Conselheiros da Revolução, a caminho das cerimónias da independência de Moçambique. Uma parte da equipe com que estava a trabalhar ia viajar nele legitimamente. Entrámos a filmar algumas entrevistas (Otelo Saraiva de carvalho, Álvaro Cunhal, Francisco Pereira de Moura, Carlos Fabião) e quando soou o aviso para os passageiros ocuparem os seus lugares, podia ter ocupado um qualquer. Outro elemento da equipe que não era para ir, de nacionalidade belga, ficou. Eu saí do avião discretamente e sentei-me no carro, cá fora, à espera dele. Mas o avião partiu com ele, como poderia ter partido comigo. A realidade é que ainda era a PIDE portuguesa que controlava o aeroporto de Maputo, e eu não quis correr o risco de passar os dias que lá ficasse dentro de uma prisão africana.

2. Foi um agente da PSP que me abriu o carro fechado, com a chave na ignição, sem perguntas, nem desconfianças. Tinha chegado, tarde e más horas, ao saudoso cinema Império, para uma matinée. Com a pressa, fechei o carro sem tirar a chave, o que era possível em vários modelos, neste caso, um carocha. Saí do cinema já de noite e comecei a escarafunchar na janelinha da frente, a tentar uma coisa que nunca fizera e de que não tinha a mínima experiência. Quando o "creme Nivea" parou ali ao lado, pensei que me fossem multar por ter estacionado, para lá do passeio, quase no relvado da Alameda. Mas isto não parece ter admirado ninguém. Para mim, continua a ser motivo de espanto.


3. Em 2002, fui gravar um programa de televisão ao nordeste brasileiro, num resort da Praia das Fontes, a sul de Fortaleza, propiedade de um vizinho meu, aqui na Ericeira. Como é óbvio, fui com todas as despesas pagas pela produção. Mas, na semana que lá estive, não tive a ocasião de comprar sequer um maço de cigarros. Daí o meu espanto, ao voltar a Lisboa, por ter a mesma nota de 20 neuros que já lá estava à partida. Mas não foi a única viagem que fiz sem gastar um cêntimo. Aliás, acho que é a melhor forma de viajar.

4. Não proibi, claro. Mas sugeri que certo deputado, muito presente nos tempos de antena de campanha eleitoral, deixasse de ser presença obrigatória. Eu gosto muito dele: é uma pessoa simpatiquíssima. Mas a verdade insofismável é que ele tinha uma péssima relação com a câmara: ficava tremendamente tenso, imóvel, e o suor escorria-lhe na testa, criando reflexos tremendos. Além de que fazia umas boquinhas a falar que distraíam qualquer espectador, perdendo-se assim o conteúdo do discurso: o pessoal ficava a comentar os trejeitos e os gafanhotos que lhe saltavam da boca, em vez de ouvir a mensagem. A sugestão foi bem aceite e deixei de o usar nos tempos de antena. Espero que ele não fique muito chateado comigo, se vier a ler isto.

5. Não vou contar os casos todos, seria muito chato. Mas é verdade que recebi 3 vezes voz de prisão, só estive uma trancafiado por umas horas, e fui seis vezes a tribunal, sempre por desobediência às regras ou à bófia. Fui sempre absolvido. Se bem que, da última vez, o delegado do ministério público recorreu da minha absolvição para a Relação. O espírito de porco tinha qualquer mala-pata e escreveu mais de 40 páginas de quesitos por causa de uma miserável (pseudo)infracção ao código da estrada. Haja paciência! O caso ficou mais complicado, e o meu advogado teve de trabalhar. Depois pediu-me para não repetir a brincadeira, e é verdade que não tornou a acontecer. Já lá vão uns anos.
Isto sem falar das detenções no Governo Civil, e outra na antiga esquadra do Matadouro, ali às Picoas, no tempo do liceu. Mas isso eram outras guerras.

6. Entrei, para jantar com uns amigos brasileiros, no Aleixo, no Porto. Foi no verão passado. Só havia duas mesas ocupadas, e numa delas estava o Mário Soares a jantar com um senhor de idade que sei quem é mas não me consigo lembrar do nome. Eu tinha estado, semanas antes, na Fundação, em conversa com ele por causa de uma série documental para a RTP. O homem tem uma excelente vista e melhor memória. Cumprimentou-me de longe. Quando saiu, passou pela nossa mesa e veio de mão estendida. Convencido de que ele se lembrava da minha cara, mas não saberia de onde, alinhavei uma apresentação patética. Mas ele sabia muito bem. Adorei a cara de espanto dos meus amigos: olha a importância!

7. Fui estudar para a Bruxelas depois de ter feito o BAC, em 1968. O primeiro trabalho que os amiguinhos me arranjaram foi na copa do restaurante universitário, na ULB, a descarregar os restos das refeições dos tabuleiros usados. Ó trabalho de merda! Bota malcheiroso nisso. Não aguentei muito tempo. Depois, fui vigiar a loja da Associação de estudantes, para dissuadir os roubos. Também não tinha nada a ver comigo. Finalmente, encontrei no painel das mensagens uma proposta que me agradou: colorir banda desenhada. Lá fui integrar a equipe de Albert Weinberg, criador de Dan Cooper, o piloto de jactos franco-canadiano. Parecia uma equipe de cinema: o velho (ainda é vivo) criava a história e corrigia as feições das personagens principais; havia um desenhador para as personagens segundárias, outro para os veículos (carros, aviões, etc.), outro para as paisagens e cenários em geral, e eu para botar cor naquilo tudo. Sem esquecer o gajo dos "phylactères", que são as bolhas dos diálogos. Era trabalho escravo. Havia que produzir duas, ou mais, páginas de BD por semana, a serem publicadas na revista belga do Tintin (a original), e nunca havia mais do que uma de avanço. Era um sufoco. E estupidamente mal pago. Mas gostei da experiência, apesar das incompreensões culturais. Muitas tinham a ver com interpretações diferentes das mesmas coisas: a(s) cor(es) do mar e do céu não são as mesmas para um português ou para um belga. Também não interpretamos os ambientes da mesma forma.

Tive a colecção toda do Tintin belga em que trabalhei. Mas ficou lá numa das minhas vidas passadas. Os albuns do Dan Cooper já não estão à venda. Alguns só no Ebay. Mas os novos donos publicaram uma edição integral em vários volumes. Folheei-os na FNAC á procura da "minha obra", e cheguei à conclusão que só "produzi" uma história completa, apesar de ter apanhado o fim da anterior e o princípio da seguinte. São elas, pela ordem: Le ciel de Norvège, terminada no número 44 (Outubro) de 1968, Les pilotes perdus, entre Fevereiro e Junho de 1969, e Appollo appelle Soyouz, de Julho ou Agosto de 1969 a Janeiro de 1970. Posso ter colorido uma das capas (# 10 - Março, ou # 46 - Novembro) da revista Tintin belga de 1969. Ou até as duas.

8. Não naufraguei, não senhor. Mas foi por uma unha negra. Apanhei um dos maiores cagaços da minha vida. Ía com a minha companheira num mar de senhoras, a descer o Sado a grande velocidade, em direcção ao Portinho da Arrábida. Já na barra, mesmo em frente do Outão, entrámos num corredor de vento (por isso se chama vento encanado) que começa a levantar ondas cada vez maiores. A certa altura tive de cortar o gaz e ir pianinho. O barco subia as ondas, cada vez mais cavadas, cavitava lá em cima, na crista, e depois caía, com um barulho tremendo, lá no fundo. Parecia que se ia partir todo. Era um casco de 17 pés e cabia inteirinho na onda. A Laura gritava, de punhos brancos como a cal de tanto se agarrar à amurada. Parecia um filme de terror. Eu, por simpatia e/ou cagaço, berrava também, com as mãos fincadas no volante. Não podia correr o risco da coluna do motor virar, porque me arriscava a atravessar o barco, e aí é que eram elas. Tinha de continuar de proa para as ondas.
Isto durou "séculos". Ali bem perto, do lado dos cabeços de Troia, vários botes pescavam calmamante, fora daquela ondulação. Ao chegar à Figueirinha, consegui virar ligeiramente até ficar dentro da zona de protecção do esporão rochoso. Aí, sem sequer parar o barco, virei 180º e voltei a Setúbal, a favor da corrente. Ninguém me apanhava mais no mar, naquele dia.

9. Em 1973, fui para Cannes com um colega da escola de cinema, em Bruxelas, que já era crítico encartado. Tinha preparado minimamente a viagem, pedindo a um amigo, que dirigia um semanariozito em Portugal, um cartão (falso) de colaborador e uma carta de apresentação. Como bons estudantes tesos, viajámos no comboio da noite que chega a Nice de madrugada. Chegado a Cannes, apresentei-me aos serviços de acreditação dirigidos pela Mme Fargette, que era um autêntico dragão. Claro que não "encontraram" a minha acreditação, já que ela não tinha sido solicitada. E mesmo que tivesse sido, não ma dariam. Havia 1500 jornalistas/repórteres acreditados. E mais uns mil a pedir para o serem. Enquanto esperei que me "resolvessem" a situação, vi pessoal de publicações famosas ser recambiado sem apelo nem agravo. Não levantei ondas, como fazem normalmente os franceses. Fiquei mudo e quedo. Foram-me dando convites para ir assistir às sessões oficiais, ou para ir comer a diversas recepções e cocktails. No fim do dia, desistiram de procurar. Como eu era o mais novo e foram com a minha cara, "assumiram" o erro e deram-me uma acreditação.
Claro que trabalhei, publiquei e mandei-lhes os recortes. No ano seguinte, já fazia parte das listas. Desde esse dia, vou às coisas, porque o máximo que pode acontecer é levar uma nega. E essa está sempre garantida.

Todos temos na vida momentos especiais, referências engraçadas e memórias várias que integram o imaginário colectivo. Uma delas é um comentário, de tom meio machista, que ficou na "cultura": "terá casado aos 15?", referindo-se a uma jovem mãe, normalmente como o milho. Era uma deixa de um anúncio de já não sei que sabonete (Palmolive?) que deveria ser gravado por já não sei que locutor (obrigado, Dr.Alzheimer) que faltou á sessão de gravação. O único macho ali disponível para dar a voz, era eu. E lá fiquei eu, para aquela curta posteridade, a dizer: "Três filhos? Terá casado aos 15?", que soou na RTP durante "séculos", e depois, durante muito tempo, na vida real. O machinho, no filme, não era eu.

domingo, 24 de maio de 2009

O ópio do povo e a imagem do mal

Pondo fim a seis séculos de hesitações, Gutenberg juntou o papel criado na China, o tipo móvel usado na Coreia desde o século IX, e produziu a máquina que iria fazer entrar a humanidade na era moderna. Gutenberg tinha o que os chineses e coreanos não tinham: um alfabeto de 26 letras, o que facilitava imenso as coisas, e um best-seller: a Bíblia da igreja católica romana. Foi este último facto que possibilitou que a “invenção” da tipografia se tornasse uma inovação. Com efeito, qualquer invenção que não desperte o interesse da indústria, que não tenha a possibilidade de se tornar rentável, justificando o investimento, arrisca-se a apodrecer nas gavetas do inventor, sem vir a ver a luz dia. Não foi Gutenberg que ficou rico com a “sua” invenção: os financiadores a quem recorreu foram mais gananciosos do que ele. Mas isso não é importante para a civilização ocidental. Importa é que centenas, e depois milhares de pessoas puderam ler, pela primeira vez, o mesmo texto, sem a intermediação de padres ou confessores, sem o beneplácito ou a autorização (ou chancela do autor) da santa madre igreja, sem os “erros” de tradução ou adaptação dos copistas, que garantiam, até aí, a difusão rara e cara, dos textos sagrados. E isso mudou tudo.
Não é por acaso que a Igreja católica romana não gostou do invento: a autoridade dos seus representantes na Terra estava posta em causa. O poder já não se baseava no conhecimento dos textos, já que este corria o risco de se banalizar. Também não foi por acaso que foi instituído o
Index Librorum Prohibitorum ("Índice dos Livros Proibidos" ou "Lista dos Livros Proibidos"), lista de publicações proibidas pela Igreja Católica, consideradas "perniciosas", e que continha, também, as regras da igreja relativamente a livros. Não podendo “silenciar” o progresso, o poder usava a sua influência moral para desacreditar os textos que poderiam miná-lo. Houve gente a morrer na fogueira (vide Giordano Bruno) por não se conformar; à pala dele, Index, cientistas, filósofos, Galileu Galilei, Nicolau Copérnico, Vítor Hugo, foram silenciados e perseguidos. Pasme-se ou não, o Index só veio a desaparecer em 1966, com o papa Paulo VI. Já havia televisão, e tudo.
É sabido que a divulgação da Bíblia, possibilitada pela tipografia, ajudou os defensores da Reforma protestante. O cisma provocado por luteranos e calvinistas minou o poder secular da igreja de Roma, e dividiu o mundo ocidental.

Não foi por acaso que evoquei a tipografia no limiar da era moderna: com a impressão fixaram-se textos que nunca o tinham sido, como constituições, regras jurídicas, pactos, delimitação de fronteiras... Isto é, as regras podiam, a partir daí, ser do conhecimento geral e o poder arbitrário ficava mais limitado.

Também não foi por acaso que evoquei a indústria: a inovação é, muitas vezes, ou mesmo quase todas as vezes, uma questão de investimento, com o lucro como objectivo. E investe quem tem os meios para o fazer, mormente, dinheiro. E isto também é verdade para os meios de comunicação, imprensa, rádio e televisão.

Os meios de comunicação tornaram-se necessários quando a
Ágora se tornou insuficiente para o “poder” se dirigir aos cidadãos. Candidatos, eleitos e leaders (ou líderes) de opinião, precisam de veicular as suas “mensagens” políticas (de pólis: cidade), culturais ou comerciais. A voz deles tem de chegar ao “povo”, aos eleitores, aos consumidores. E o “acaso” faz bem as coisas: o estado, com o "seu" espaço hertziano, e o poder económico, com os seus meios de produção, detêm os meios de comunicação e portanto, é por eles que falam os leaders (ou líderes) políticos, culturais, e comerciais. Imprensa, rádio e televisão são meios de comunicação de sentido único: fala quem pode, ouve quem deve, e a ordem está assegurada.

Segundo Jürgen Habermas (
A Mudança Estrutural da Esfera Pública, 1962), duas esferas coexistem na sociedade: o sistema e o mundo da vida. O sistema refere-se à “reprodução material”, regida pela lógica instrumental (adequação dos meios aos fins), incorporada nas relações hierárquicas (poder político) e de intercâmbio (economia). O mundo da vida é a esfera de “reprodução simbólica”, da linguagem, das redes de significados que compõem determinada visão de mundo, sejam eles referentes aos factos objectivos, às normas sociais ou aos conteúdos subjectivos. Habermas produz o diagnóstico da colonização do mundo da vida pelo sistema e da crescente instrumentalização desencadeada pela modernidade, sobretudo com o surgimento do "direito positivo", que reserva o debate normativo a técnicos e especialistas: um século de imprensa, depois rádio, depois televisão, transformou os “consumidores” numa massa mais ou menos homogénea: todos, cada um no seu canto, ouvem o mesmo discurso; todos, cada um em sua casa, assistem ao mesmo espectáculo da política; todos, isolados mas unidos na fé, acreditam nas mesmas coisas.

E cadê a opinião pública? Ora bem, não duvido que o público, cada um no seu cantinho, tenha a sua opinião acerca das coisas. Mas estas opiniões dispersas não têm como se juntar e constituir uma força homogénea já que, como vimos, o “público” não possui os meios para veicular e confrontar as SUAS opiniões. A “crítica” da opinião pública está feita (Pierre Bourdieu,
L'opinion publique n'existe pas, Noroit - 1971), não vou insistir no assunto.

Em "Uma Contribuição para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel" (1844), Marx diz que o sofrimento religioso é, a um único e mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas. É o ópio do povo. A imagem ficou e transformou-se na metáfora do entorpecimento das “massas”.
Durante muito tempo, parafraseando uma conhecida editora de discos, His Master’s Voice, o poder, tanto político como económico, representava-se a si próprio, com o discurso da legitimidade contra os inimigos do “poder”, da “normalidade”, e da fé. Os perigos da “anormalidade” eram suficientes para manter o medo, a ansiedade e a dúvida que congregam e cimentam as solidariedades.
Com a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, proclamou-se “O fim da história” (Francis Fukuyama, 1992). É uma linha de abordagem da história, de Platão a Nietzsche, passando por Kant e Hegel, destinada a revigorar a tese de que o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da humanidade, ou seja, de que a humanidade teria atingido, no final do século XX, o ponto culminante da sua evolução com o triunfo da democracia liberal ocidental sobre todos os demais sistemas e ideologias concorrentes. Com efeito, tendo este século visto, primeiro, a destruição do fascismo e, em seguida, do socialismo, que foi o grande adversário do capitalismo e do liberalismo no pós-guerra, o mundo teria assistido ao fim e ao descrédito dessas duas alternativas globais, restando apenas, actualmente, em oposição à proposta capitalista liberal, resíduos de nacionalismos, sem possibilidade de significarem um projecto para a humanidade, e o fundamentalismo islâmico, confinado ao Oriente e a países periféricos. Assim, com a derrocada do socialismo, Fukuyama conclui que a democracia liberal ocidental firmou-se como a solução final do governo humano, significando, nesse sentido, o "fim da história" da humanidade.

Então, que receios, ansiedades e dúvidas poderão continuar a manter a firmeza da “congregação”? Que novos “ópios do povo” poderão ser utilizados para garantir a firmeza dos “fiéis”? Para já, o medo do fundamentalismo islâmico, claro! Desde o 11 de Setembro que sabemos isso. Depois, o terror do desastre anunciado que o progresso está a provocar na natureza: são os fundamentos do conforto moderno que são postos em causa. Se não bastar, arranjam-se umas pandemias (gripes das aves, dos suínos), uns escândalos (Casa Pia) que mexem nos fundamentos das filosofias de brandos costumes; as agressões contra o santo dos santos que é o nosso corpo (tabagismo, colesterol, etc), o poder criativo não precisa de ter limites. Claro que tudo bem condimentado com muita verdade, já que, muita gente o sabe, só assim se produz uma grande mentira. E não é muito complicado, porque quem não sabe nada, acredita em tudo.

Onde é que a porca torce o rabo? Pois é: a tecnologia soltou-se, fugiu ao controle e voltou a pôr os fiéis a falar uns com os outros, coisa que não acontecia há muito tempo. Opiniões podem ser confrontadas, factos podem ser pesquisados, mentiras podem ser reveladas. Instalou-se o caos na esfera pública, como diz Habermas (2006). O discurso já não está só reservado a técnicos e especialistas. Que grande nóia! Os fiéis já não estão controlados? E como todas as pandemias, isto pode generalizar-se! E agora? Como manter o discurso massificado? Colocando uma mordaça na net, claro! Colocando a internet no jogo dos meios de comunicação tradicionais, imprensa, rádio e televisão, com mediação dos conteúdos, acesso restrito a canais programados e "tempo de antena" reservado a “técnicos e especialistas” encartados e reconhecidos. A blogoesfera é a nova imagem do mal.

sábado, 14 de março de 2009

Português dual

Ser português tem muito que se lhe diga. Tanto vivemos as vitórias da selecção, empoleirados aos pés do leão do Marquês de Pombal, roucos de tantos vivas, como caímos na mais lúgubre depressão quando o chefe olhou de lado, a morenaça da caixa do supermercado nem sorriu a uma graçola nossa, o rolamento da roda traseira direita começou a zoar, o cheque dos reembolsos do IRS tarda a chegar. Já aqui comentei o orgulho de ser tuga ao ver o que os patrícios fizeram no Brasil: os fortes do Amazonas, lá na pata que os pôs, na fronteira com a Bolívia e a Colômbia, cidades como Ouro Preto, Diamantina, as exportações que enriquecem o PIB brasileiro, como o coco, e os seu derivados, a cana e o açucar, os bois vindos da Índia, enfim, tudo com marca bem lusitana, de primeiros grandes box-movers mundiais.

Também com marca bem lusitana, como o nome indica, o trabalho da cientista Elvira Fortunato, que “inventou” os leds transparentes e o transistor de papel, que são autênticas revoluções, não só científicas, tecnológicas, mas também, civilizacionais. E que bom que ela tenha encontrado na Universidade Nova de Lisboa, um parceiro que lhe põe à disposição, todos os meios de que ela necessita para as pesquisas que leva a cabo. Brilhantemente. Não sei se todos entendemos bem do que se trata, mas tem a ver com a indústria da comunicação, que é quem lidera o progresso tecnológico. À escala do planeta. Os leds transparentes vão tornar obsoletos todos os suportes de imagem conhecidos: écrans de tv, manómetros analógicos ou digitais, etc... Em vez de se produzirem monitores de canhão de electrões, monitores de plasma ou de quarzo líquido, a imagem poderá formar-se em qualquer vidro, manga de plástico e outros materiais de produção (ainda) barata. O transístor de papel é uma revolução mais admirável ainda, já que vai lançar para o caixote do lixo da história, uma data de tecnologia, ainda bastante cara: as memórias de computador, as “pendrives”, livros e jornais, já que permite “armazenar” um romance como Guerra e Paz, ou Os Irmãos Karamazov, sem falar do Visconde de Bragelonne, numa só folha de papel reciclado; um jornal diário pode ser igual a uma página da internet, com imagens fixas, e em movimento, e muito mais... Coitado do Gutemberg! Levou seis séculos a inventar a tipografia, e, cinco séculos depois, lá vai tudo para o esgoto! É realmente brilhante.


O que não é brilhante é que, em Portugal, NINGUÉM se interessou por tudo isto. A Ferrari já está a equipar os seus carros com os pára-brisas recheados de leds transparentes, para que o condutor não tenha de baixar os olhos para o painel dos instrumentos; mas nós não somos todos jogadores de futebol da primeira linha para usufruirmos destas benesses. Azar. E, pior do que isso, li, num jornal de hoje, que são brasileiros que vão investir no transistor de papel. Ora porra! Quem foi o filósofo que disse que, depois do amor, a carne é triste?


Mas logo a seguir, vi uma notícia de primeira página, noutro jornal, com foto dos pneus e tudo, que conta que o Sócrates engordou 8 quilos! Haja saúde! O ânimo do tuga é uma verdadeira montanha russa.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A verdade da mentira

Acredito que um blog carregue muito de autobiográfico, e até acho impossível que isso não aconteça. No entanto, o exercício da biografia é algo de muito paradoxal. Quando nos revemos, no passado, nem que seja uma hora atrás, estamos a ver uma pessoa que já não é, numa situação que já passou. É praticamente impossível reconstruir uma realidade que já fugiu. Estamos, por isso, a rever uma construção: a que não tem, provavelmente, fotografias para o provar; e mesmo que tivesse, só contemplariam um único ângulo dessa realidade; que comporta cenários e figurantes de que não nos recordamos com a fidelidade indispensável; que faz parte de outro tempo, com outras verdades, outras éticas e outras morais. Não nos revemos à luz do que pensámos, na época, com outras motivações, impulsos e manias. A biografia é, portanto, um acto de ficção, uma "mentira", com uma reconstrução "moral" já que já vem carregada com um julgamento, com uma apreciação. Mas, como diz o mestre Wells, o "aldrabão" Orson, para contar uma boa mentira, é preciso envolvê-la em grandes doses de verdade. Só assim será credível. Tanto na forma, como no fundo.

Aceitando o desafio da Alexandra (Real Gana), aqui ficam 9 afirmações, das quais só 6 podem ser provadas. O exercício biográfico fica para as respostas. Um dia destes...

1. Fui de avião, para outro país, sem bilhete, sem passaporte, nem muda de roupa.

2. Estava eu a tentar forçar a janela do meu carro, estacionado no passeio, trancado com as chaves na ignição, quando pára outro ali ao lado. Saem dois senhores guardas... que me abriram o carro. Custou-me um grande obrigado. Sem perguntas!

3. Noutra viagem, fui para o outro lado do mundo, por mais de uma semana, e regressei a Lisboa com a mesma, e única, nota de 20 euros que levava no bolso, à partida.

4. Proibi, e com efeitos vinculativos, um líder parlamentar (português) de aparecer na televisão.

5. Fui preso 3 vezes (e mais umas duas ameaças) por desobediência e resistência à autoridade.

6. Num restaurante do Porto, um ex-presidente da república dirigiu-se a mim para me cumprimentar efusivamente.

7. Pintei (talvez seja mais, colori...) um álbum de banda desenhada, publicado durante 48 semanas, na revista do Tin-Tin.

8. Naufraguei, a menos de 100 metros da costa, à vista de outros barcos, que pescavam paulatinamente.

9. No meu primeiro Festival de Cannes (devia ter uns 21 anos), convenci os serviços de acreditação de que tinham perdido a minha (acreditação)... que nunca existiu.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Especialista instantâneo

Será natural que da nossa identidade faça parte alguma “expertise”, alguma coisa de que gostemos e conheçamos em profundidade? Já aqui escrevi que nós, portugueses, temos, em geral, uma vaga ideia de tudo. Obviamente, nem que seja na nossa profissão, devemos ter um campo em que sejamos excelentes. Não? Ora vejamos: não esperamos que qualquer brasileiro saiba sambar? Que qualquer italiano saiba cozinhar pasta? Acho que isso seria o mesmo que esperar que qualquer português cantasse o fado. E acredito que em muitas latitudes esperem isso de nós. No Rio, exigem de mim que saiba cozinhar bacalhau e entenda de vinhos. Ora, nem uma nem outra coisa são verdade. Então, acho que tive de me tornar especialista. À pressão.

A culinária tem destas coisas, como a leitura ou o cinema: vai-se provando, e, se não andarmos completamente distraídos, as coisas acabam por entrar lá para o fundo da memória e constituem uma camada de conhecimentos de que nem suspeitamos a existência.

O bacalhau, no Rio, é “português”, mesmo que seja da Terra Nova ou da Noruega. Mas um português que se preze, gosta de bacalhau. Devemos ser dos únicos povos cujo prato nacional é importado. Mas fama é fama, e é muito mais complicado ter de explicar que já tive de comer bacalhau cozido com grão ao almoço de domingo, durante toda a minha infância (eu sei que é um exagero, mas é assim que eu o sinto), e que odeio aqueles fios persistente que se entalam entre os dentes. Também não digo “pá” em cada frase que profiro: o que faz de mim, aos olhos dos brasileiros, mais finlandês do que português.

Há uma coisa que eu sei, e não preciso de ir ver ao Google, é que quem diz bacalhau, diz azeite: óleo extraído do fruto da oliveira, que, em português, outra particularidade, se diz azeitona, e não oliva: do árabe “al zeitun”, o fruto que dá o “al zeit”. Que também deu “aceite”, com que nuestros hermanos temperam a salada e enchem o cárter do carro. O que nem sequer está mal visto, já que convém usar nos carros óleo vegetal, porque não é explosivo. Daí eu tentar explicar aos brasileiros, como introdução à culinária portuguesa, que eles não vão querer ingerir óleo lubrificante, mistura da prensa da azeitona com óleos diversos do caroço e do bagaço: o azeite obtém-se na primeira prensa, e só assim é virgem. Da Terra Quente transmontana, ou do Alentejo. O melhor! Também é o mais caro nos supermercados do Rio, o que também é um argumento de peso para a burguesia carioca. Convém tecer umas loas, com ar desportivo, ao azeite cipriota: “dizem” que é do além. Nunca provei, mas também não há à venda no Rio. Num país em que mais de metade da população não paga impostos, o estado abate-se, que nem formiga em açucareiro, para taxar os produtos importados tão do gosto da classe média: os ricos que paguem a crise.

E porque é que não há azeite brasileiro? Estranho, não é, num país em que os portugueses puseram todo o seu engenho... Pois é! Mas se eles tivessem plantado oliveiras no Brasil, a metrópole não poderia vender azeite à colónia. Nem vinho, aliás. Sem esquecer o queijo, o fumeiro, chouriço, paio, linguiça... Assim, dá para entender a racionalidade da colonização do Brasil: cana de açúcar, sim, trazida da China e testada intensivamente na Madeira. Há lá espaço para isso. Bem escrevia Pero Vaz de Caminha na carta a el-rei D.Manuel: “Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela (na terra recém encontrada), ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!”. Além disso, ele gaba o arcaboiço dos nativos, bons para trabalhar a terra. Coitados: com a chegada das caravelas, passaram, de um dia para o outro, da idade da pedra à era do trabalho! Foi o fim do paraíso.

Depois da cana, os portugueses levaram os coqueiros, testados em Cabo Verde. E o gado zebu, levado da India: tudo que não cabia em Portugal e transformou o Brasil no maior produtor/exportador do mundo (açúcar, copra, óleo de coco, carne...).

Voltando ao bacalhau, qualquer atrazado mental sabe que ele é bom é a boiar em azeite (português) a ferver. Depois de cozido em leite para tirar o excedente de sal, grelhado na chapa do lado da pele, eventualmente envolvido em papel de estanho para não secar, e depois metido no forno, com batatas a murro! E muito alho. Nada de complicado, mas de efeito garantido. Junta-se-lhe um nome impronunciável para qualquer brasileiro que se preze, “à lagareiro”, e temos especialista!

Especialista em vinho, dá um bocado mais de trabalho. Vinho, começou há pouco tempo a produzir-se, no sul do Brasil. A casta escolhida foi a Touriga Nacional. Por ser resistente, dizem. Em tempos, só profissionais é que sabiam dessas coisas: castas. Os outros, bebiam. Com a chegada do vinho ao Novo Mundo, as castas tornaram-se moda, porque eles (lá no Novo Mundo) começaram pelo princípio: com uma só casta. Mas tinham de colocar vinho no mercado. Daí a popularidade dos Cabernet Sauvignon, dos Malbec e Merlot, consoante estamos na Califórnia, Argentina ou Chile. E os vinhos ficaram todos iguais. Todos? Não! Num cantinho da Europa, um pequeno povo resiste...

Se o vinho novo se caracteriza pela videira usada (entidade abstracta que confere uma identidade ao produto), o vinho português poderia ser uma “mistureba” para os brasileiros: como explicar-lhes que é feito com mistura de diversas castas? Só pelo gosto, produto de cultura milenar: argumento definitivo! Como o “terroir” dos franceses. Existe, e pronto. E confere aos nacionais uma autoridade indesmentível, mesmo que eles não saibam mais nada. Mas dá para diferenciar um tinto da península de Setúbal, do Alentejo ou do Douro; dá para impingir um Alvarinho ou um branco seco ribatejano. Como explicar um país tão pequeno com uma tamanha variedade de vinhos? Um mundo, comparado com o das monocastas. E, em terra de cegos, já dá para reinar.

Não é difícil imaginar uma linha de exportação de produtos de primeira qualidade para a América do sul: queijo de Azeitão, Serpa ou da Serra, para quem está habituado a queijo de Minas, ou a imitação de Gorgonzola, é uma benção dos céus. Como fazer um arroz de pato sem chouriço e farinheira? Faz toda a diferença, para quem o tempera com azeite. Porventura espanhol...! E o cobre com “linguiça calabresa” que nem gordura tem para derreter, no forno, para dentro do arroz: mais parece salsicha fresca.

A classe média brasileira não é diferente das outras: pela-se pelo que é estrangeiro, exótico. Como não deixar descascar o camarão gigante, nem corta-lhe a cabeça. Surpresa é grelhá-lo inteiro na chapa, bem pincelado, com um aiolizinho de se le chupar los dedos. E mais, e mais...
Sem dúvida, gastronomia é cultura. E como tal, deve estar inculcada nos nossos cromossomas. Mesmo que o não saibamos, um dia, a necessidade e o bom senso podem trazer tudo à superfície.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Moralmente mestiços

Todas as culturas, religiões ou credos possuem mitos fundadores. Nós, a Ocidente, têem-nos definido em função das fórmulas de sexuação. Charles Melman, em “A Identidade Histérica”, caracteriza a horda primitiva com um fundador (o Pai) não castrado e toda a sua prole, que passou pela castração. O lugar dos "mestres", por oposição aos "servidores", é autenticado pela referência ao fundador. Os que o ocupam legitimam a sua autoridade, mesmo não possuindo as qualidades requeridas para tal, desde uma autoridade fundadora, que procedeu à nomeação da linhagem. O acesso à linhagem dá-se através da passagem pela castração. A castração tem a sua origem na cena da refeição totémica ou cena do parricídio, que supõe, nas origens do totemismo, a existência de um pai violento e ciumento que reserva para si todas as fêmeas (por isso incastrado, porque não sofre nenhuma interdição). Esse pai todo-poderoso é quem dita as leis, cujas principais são: não matar o pai e não ter acesso a nenhuma das mulheres que lhe pertençam. Os filhos nutrem por esse pai um sentimento ambivalente: amam-no, respeitam-no e admiram-no, porque assim obtêm protecção; mas também o odeiam pela sua intensa autoridade, com a qual rivalizam.

Conforme vão crescendo, vão sendo expulsos, na medida em que podem representar um perigo para o patriarca tirano. Os irmãos expulsos reúnemse, matam o pai e devoram o seu cadáver, acabando, assim, com a horda primitiva. Em consequência disto, o pai morto adquire um poder muito maior do que tivera em vida. Também se reforçam os seus mandamentos, e ficam ainda mais ratificadas as suas leis, e é esse o ponto de partida das organizações sociais, das restrições morais e da religiosidade. A proibição funda-se na culpa dos filhos, após a morte do pai da horda primitiva, porque, ao nível do inconsciente, a Lei refere-se, antes de mais nada, a uma instância idealizada; ou, melhor, a Lei é referida em seu Nome (Nome-do-Pai). A partir daí, esta filiação, que impõe a castração (não ter acesso a todas as mulheres), é a operação que limita e ordena o desejo do sujeito.


Está bem. Mas será que isso é mesmo verdade para nós, portugueses? Na sua busca da identidade brasileira, Gilberto Freyre vai catá-la no português, claro. Usemos, então, Freyre, como testemunha imparcial, para tentar entender o que é um português. Nós somos o que fazemos, e o sucesso do português no Brasil é explicado, segundo Freyre (Casa Grande & Senzala), pelo seu passado étnico, “de povo indefinido entre a Europa e a África”: a influência africana fervendo sob a europeia e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, à religião.... um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao Cristianismo... Freyre cita Alexandre Herculano falando dos portugueses: “População indecisa no meio dos dois bandos de contendores (nazarenos e maometanos), meio cristã, meio sarracena, e que em ambos contava parentes, amigos, simpatias de crenças ou de costumes”. Há uma indecisão étnica e cultural entre a África e a Europa, bicontinentalidade que Freyre compara à bissexualidade no indivíduo. Em Portugal não há um tipo determinado, e é essa imprecisão que permite ao português reunir dentro de si tantos contrastes “impossíveis de se ajustarem num perfil mais definidamente gótico e europeu.”


Por outro lado, esse outro lugar, a colónia, onde vão estar reunidos, tanto os que não passaram pela castração, quanto aqueles em que a castração não está mais autenticada, caso do imigrante, segundo Melman, de nada adiantaria que, no seu país de origem, esse imigrante tivesse passado pela castração, pois, quando inserido numa cultura diferente, a castração deixaria de estar legitimada, o que o lançaria numa busca incessante de reconhecimento.
Com relação a esta dualidade que Melman refere, é preciso acrescentar que o imigrante traz consigo, da sua terra de origem, os mandatos paternos, que são, porém, alterados e transformados na nova terra, por efeito da passagem para uma nova cultura. É diferente dizer que o imigrante vem sem filiação e dizer que essa filiação sofre transformações. Por que é que ele abandonaria totalmente a ordenação fálica na travessia do Atlântico?

Convivem no português as duas culturas, a europeia e a africana, a católica e a maometana. Além disso, na formação da nação portuguesa há a presença semita, “gente de uma mobilidade, de uma plasticidade, de uma adaptabilidade tanto social como física que facilmente se encontram no português navegador e cosmopolita do sec. XV”. Freyre fala em “miscibilidade”, capacidade para a miscigenação que haveria no português: “a miscibilidade, mais do que a mobilidade foi o processo pelo qual os portugueses compensaram a deficiência de volume humano para a colonização em larga escala e sobre áreas extensíssimas”.

Contrariamente aos nórdicos, os portugueses mostraram aptidão para se adaptarem a regiões tropicais. Tudo isso fez com que triunfassem onde outros europeus fracassaram. E, com os casamentos com a mulher índia ou negra, formou-se uma população ainda mais adaptável ao clima tropical. Moralmente já eram mestiços e foi essa como que mestiçagem que lhes permitiu, na luta em que sucumbiam os fracos e tímidos, a fácil adaptação à vida colonial.


Em “Casa-grande & Senzala”, os portugueses são verdadeiros heróis, que deslocaram a “base tropical da pura extracção de riqueza mineral, vegetal ou animal”, o ouro, a prata, a madeira, o âmbar, o marfim, ”para a de criação local de riqueza”. Ainda que isso só fosse possível á custa da “perversão do instinto económico”, que tem a ver com o trabalho escravo e que desviou o português da produção para a exploração. Surge a “colónia de plantação”, o colono a fixar-se na terra. Surge a grande lavoura escravocrata e o aproveitamento da gente nativa, não só como instrumento de trabalho, mas como elemento de formação da família. Para Freyre, isso marca uma diferença em relação à política adotada pelos espanhóis no México e no Peru, onde foram exterminadores e segregacionistas, meros exploradores de minas de extracção.

Freyre louva os portugueses por se terem, de facto, instalado no Brasil. Mas louva, sobretudo, a ausência de um sistema rígido de administração, que teria sido uma das vantagens da colonização portuguesa. É a família e não o indivíduo ou o Estado o grande factor colonizador no Brasil. Daí constituir‑se no país a aristocracia colonial mais poderosa da América.

O facto é que o Brasil se formou sem a preocupação com a pureza da raça. O que, para Gilberto Freyre, constitui toda a força do Brasil. A única exigência para ir para Brasil era professar a religião cristã. Só se fazia questão da saúde religiosa.


Para Sergio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995), também é significativo o facto do Brasil ter origem numa nação ibérica: Portugal, como a Espanha, a Rússia e países balcânicos, são territórios através dos quais a Europa se comunica com outros mundos. É na comparação com os outros países europeus que ressalta, na Península Ibérica, a “cultura da personalidade”. É no valor que atribuem à pessoa humana que, para Buarque de Holanda, os portugueses e espanhóis “encontram muito de sua originalidade”. Daí também a dificuldade em achar, nesses países, associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos: “em terra onde todos são barões não é possível acordo colectivo durável a não ser por uma força exterior respeitável e temida”. Os privilégios feudais nunca tiveram muita importância na Península Ibérica. Para Sergio Buarque, a “bagunça” brasileira não é de hoje: “os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui....”.


Talvez não sejamos, portanto, tão devedores dos mitos fundadores ocidentais como nos têm querido fazer crer.