segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O Cinema I

O cinema é parte integrante da cultura do século XX. E do XXI também, já agora, porque ainda não há sinais de falência. Transformações, sim. O cinema mudou muito com o digital, como tudo o resto, aliás, tanto na forma, como nos conteúdos, e, sobretudo, na comunicação com o público. Não quero voltar à velha pecha do encanto da sala escura dos "cinéfilos": há muito tempo que não sinto o menor encanto ou atracção por salas cada vez mais pequenas, onde a legislação não é respeitada quanto à distância entre as filas de cadeiras (as minhas pernas não cabem na maior parte das salas (que saudades do balcão do Império...!), com estofos desconfortáveis (olha as salas do Paulo Branco!), onde paira o cheiro insuportavelmente doce das pipocas (as do Paulo Branco são “pipocas free”, salve-se isso), onde a banda sonora é pontuada por vigorosas mastigadelas, e, sobretudo, onde já não há lugares marcados.


Nunca achei que gostar de ir ao cinema era equivalente a gostar de cinema: um não funciona sem o outro, mas a confusão termina aí. Ir ao cinema é um acto profundamente social (há quem vá à missa) que morreu quando acabou o santo sacrifício do intervalo para se fumar um cigarro e ver, e ser visto, pelo resto da companhia. E que simpático era encontrar um(a) amigo(a), ou mesmo um(a) conhecido(a): dava direito a uns minutos de prosa, e quiçá uma combinação para continuar o serão. O mistério da sala escura desvaneceu-se-me completamente, há mais de 20 anos, num cinema de Nova-Iorque, onde se vê o filme com as luzes da sala acesas, para prevenir roubos e assassinatos.


Não me vou atardar sobre as transformações tecnológicas, apesar delas estarem na génese da transformação do contacto do cinema com o público. Mal acomparado, eu acho que restringir o cinema à sala e ao grande écran, é mais ou menos como limitar o acesso ao livro à biblioteca pública.

Na sala, a distância da cadeira ao écran é uma distância reverente, assim como a posição sentada a olhar para cima, também é uma posição reverente, o que transforma a imagem no grande écran numa entidade distante, impalpável, superior, inacessível e intocável. Eu acho que era esta sensação que fazia da ida ao cinema uma experiência religiosa: grande parte do mistério residia aí. A metáfora não se limita a isso: toda a indústria repousa sobre essa distância e respeito do público pelos deuses e semi-deuses do panteão: produtores, realizadores e actores. O endeusamento processa-se nas fofocas, e respectiva indústria, na cusquice e no concílio anual dos óscares, e outras premiações, que são, sobretudo, uma grande operação de marketing.


A televisão estragou um pouco esta reverência: ávida de audiências, ela banaliza a exibição de certos filmes, alterando-lhes, muitas vezes, a forma e o ritmo (estou a referir-me ao “pan and scan” e aos intervalos), dando assim cabo da fama da intocabilidade. Os filmes não foram feitos para serem vistos assim. E a televisão acabou, também, por influenciar a forma como certos realizadores pensavam o cinema que faziam: abuso de grandes planos e formato “clássico”, 4:3, mais conhecido como “quadrado”, já que os televisores não tinham formato panorâmico, para não sofrerem as amputações do “pan and scan”. Aconteceu com Sidney Pollack, falecido no ano passado, que só regressou a formatos panorâmicos no seu último filme The Interpreter, o que não fazia desde Out of Africa. A tecnologia também está a mudar na televisão, e os canais por cabo passam os filmes sem intervalo.


Depois vieram as cassetes e os DVDs, os videoclubes, o “pay-per-view” e as cópias piratas, e o acesso do público ao cinema mudou radicalmente. Mas mesmo assim continuava tudo mais ou menos contido dentro das filosofias comerciais das “majors” americanas e suas correias de transmissão pelo mundo fora: viam-se os filmes que era preciso promover, presentes nos catálogos de distribuição.

Então e os outros?


Fora dos catálogos e dos pacotes de DVDs de clássicos e de cinema paralelo, há uma quantidade enorme de filmes que fazem parte da nossa memória, que nos ensinaram uma pipa de coisas, como certas formas de ver o mundo, e que desapareceram, ou se tornaram inacessíveis. Tal como os livros que os editores já não publicam porque demoram muito a escoar, muitos filmes fizeram a sua época e são arrumados em arquivo morto porque já pouco rendem.

Surgiu, então, o Zorro! A internet não é só uma rede de computadores. Por trás deles, ou melhor, na frente deles, está muita gente que considera que, para além das políticas comerciais de editores e distribuidores, existe um mundo que não podemos perder de vista. E, mais uma vez, graças às transformações tecnológicas (codificação digital), toca a publicar “generosamente” tudo (ou quase tudo) o que a indústria nos sonega. É evidente que num mundo sem controle, tudo pode acontecer. Para além desses tesouros desenterrados, também aparecem na net filmes que ainda nem estrearam em sala. Temos pena. Ou não...

O público perdeu a reverência. Os filmes já não são intocáveis. E os editores e distribuidores só se podem queixar da política de avestruz, por não acompanharem, no comércio, a evolução tecnológica. Eu não imagino como é que eles poderão conter o que chamam “pirataria”. No meu entender, este é um conceito terrorista e mentiroso: pirataria acontece quando um produto é duplicado e comercializado sem autorização dos seus proprietários. Baixar um filme na net para o ver, está (mais ou menos) enquadrado dentro das leis europeias da cópia privada. Por isso é que se paga uma taxa destinada a direitos de autor quando se compram materiais virgens de gravação: cassetes, CDs e DVDs. Se em Portugal, ao contrário de muitos outros países europeus, essa taxa não abrange computadores, discos duros, leitores/gravadores de mp3 e/ou mp4, fotocopiadoras e papel de impressão, a culpa não é nossa, é do legislador que não “importou” devidamente as directivas comunitárias. Quem disponibiliza os filmes na net está (abrangentemente) a cultivar a cultura, passe o pleonasma. Quem defende a criminalização, em qualquer circunstância, da cópia de filmes editados em DVD, ou do seu download na net, está a praticar um acto terrorista, ilegal e de lesa-cultura. Entendam-se com o legislador. Eu tenho a certeza de que não nos importamos de pagar mais uns cêntimos no preço de um computador, de um telemóvel e outros aparatos que possibilitem a cópia digital ou analógica, ou mesmo da mensalidade do acesso à internet, para ressarcir os autores por esta forma de divulgação das suas obras. Não acho que seja assim tão difícil.


Falta a questão do PODER. Se é disso que se trata, temos de concordar que “eles” estão a perder o controle. Mais uma vez, temos pena! Ou não...

3 comentários:

Magda disse...

Comentário irrelevante, mas para o novo cinema Alvalade entra-se por um café bar, que também serve refeições ligeiras. Ao comprar o bilhete pode-se incluir a refeição, ficando por 9 euros a comida, o filme e a conversa. Repõe-se um pouco do hábito antigo, não no meio, intervalo, mas no princípio ou no fim do espectáculo.

Alex disse...

Um certo saudosismo
Um certo conservadorismo
Um certo "a tradição já não é o que era"

Mas tudo "certo"
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Magda,
comentário nada irrelevante, diria mesmo que de uma relevancia apetitosa

ZPedro disse...

Obviamente, temos pena de perder certas coisas: não seríamos animais de afectos e sentimentos. Mas que isso não nos faça ficar parados. Glorifiquem-se as aventuras inovadoras, ou, pelo menos, frequente-se o novo cinema Alvalade ;D