sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Especialista instantâneo

Será natural que da nossa identidade faça parte alguma “expertise”, alguma coisa de que gostemos e conheçamos em profundidade? Já aqui escrevi que nós, portugueses, temos, em geral, uma vaga ideia de tudo. Obviamente, nem que seja na nossa profissão, devemos ter um campo em que sejamos excelentes. Não? Ora vejamos: não esperamos que qualquer brasileiro saiba sambar? Que qualquer italiano saiba cozinhar pasta? Acho que isso seria o mesmo que esperar que qualquer português cantasse o fado. E acredito que em muitas latitudes esperem isso de nós. No Rio, exigem de mim que saiba cozinhar bacalhau e entenda de vinhos. Ora, nem uma nem outra coisa são verdade. Então, acho que tive de me tornar especialista. À pressão.

A culinária tem destas coisas, como a leitura ou o cinema: vai-se provando, e, se não andarmos completamente distraídos, as coisas acabam por entrar lá para o fundo da memória e constituem uma camada de conhecimentos de que nem suspeitamos a existência.

O bacalhau, no Rio, é “português”, mesmo que seja da Terra Nova ou da Noruega. Mas um português que se preze, gosta de bacalhau. Devemos ser dos únicos povos cujo prato nacional é importado. Mas fama é fama, e é muito mais complicado ter de explicar que já tive de comer bacalhau cozido com grão ao almoço de domingo, durante toda a minha infância (eu sei que é um exagero, mas é assim que eu o sinto), e que odeio aqueles fios persistente que se entalam entre os dentes. Também não digo “pá” em cada frase que profiro: o que faz de mim, aos olhos dos brasileiros, mais finlandês do que português.

Há uma coisa que eu sei, e não preciso de ir ver ao Google, é que quem diz bacalhau, diz azeite: óleo extraído do fruto da oliveira, que, em português, outra particularidade, se diz azeitona, e não oliva: do árabe “al zeitun”, o fruto que dá o “al zeit”. Que também deu “aceite”, com que nuestros hermanos temperam a salada e enchem o cárter do carro. O que nem sequer está mal visto, já que convém usar nos carros óleo vegetal, porque não é explosivo. Daí eu tentar explicar aos brasileiros, como introdução à culinária portuguesa, que eles não vão querer ingerir óleo lubrificante, mistura da prensa da azeitona com óleos diversos do caroço e do bagaço: o azeite obtém-se na primeira prensa, e só assim é virgem. Da Terra Quente transmontana, ou do Alentejo. O melhor! Também é o mais caro nos supermercados do Rio, o que também é um argumento de peso para a burguesia carioca. Convém tecer umas loas, com ar desportivo, ao azeite cipriota: “dizem” que é do além. Nunca provei, mas também não há à venda no Rio. Num país em que mais de metade da população não paga impostos, o estado abate-se, que nem formiga em açucareiro, para taxar os produtos importados tão do gosto da classe média: os ricos que paguem a crise.

E porque é que não há azeite brasileiro? Estranho, não é, num país em que os portugueses puseram todo o seu engenho... Pois é! Mas se eles tivessem plantado oliveiras no Brasil, a metrópole não poderia vender azeite à colónia. Nem vinho, aliás. Sem esquecer o queijo, o fumeiro, chouriço, paio, linguiça... Assim, dá para entender a racionalidade da colonização do Brasil: cana de açúcar, sim, trazida da China e testada intensivamente na Madeira. Há lá espaço para isso. Bem escrevia Pero Vaz de Caminha na carta a el-rei D.Manuel: “Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela (na terra recém encontrada), ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!”. Além disso, ele gaba o arcaboiço dos nativos, bons para trabalhar a terra. Coitados: com a chegada das caravelas, passaram, de um dia para o outro, da idade da pedra à era do trabalho! Foi o fim do paraíso.

Depois da cana, os portugueses levaram os coqueiros, testados em Cabo Verde. E o gado zebu, levado da India: tudo que não cabia em Portugal e transformou o Brasil no maior produtor/exportador do mundo (açúcar, copra, óleo de coco, carne...).

Voltando ao bacalhau, qualquer atrazado mental sabe que ele é bom é a boiar em azeite (português) a ferver. Depois de cozido em leite para tirar o excedente de sal, grelhado na chapa do lado da pele, eventualmente envolvido em papel de estanho para não secar, e depois metido no forno, com batatas a murro! E muito alho. Nada de complicado, mas de efeito garantido. Junta-se-lhe um nome impronunciável para qualquer brasileiro que se preze, “à lagareiro”, e temos especialista!

Especialista em vinho, dá um bocado mais de trabalho. Vinho, começou há pouco tempo a produzir-se, no sul do Brasil. A casta escolhida foi a Touriga Nacional. Por ser resistente, dizem. Em tempos, só profissionais é que sabiam dessas coisas: castas. Os outros, bebiam. Com a chegada do vinho ao Novo Mundo, as castas tornaram-se moda, porque eles (lá no Novo Mundo) começaram pelo princípio: com uma só casta. Mas tinham de colocar vinho no mercado. Daí a popularidade dos Cabernet Sauvignon, dos Malbec e Merlot, consoante estamos na Califórnia, Argentina ou Chile. E os vinhos ficaram todos iguais. Todos? Não! Num cantinho da Europa, um pequeno povo resiste...

Se o vinho novo se caracteriza pela videira usada (entidade abstracta que confere uma identidade ao produto), o vinho português poderia ser uma “mistureba” para os brasileiros: como explicar-lhes que é feito com mistura de diversas castas? Só pelo gosto, produto de cultura milenar: argumento definitivo! Como o “terroir” dos franceses. Existe, e pronto. E confere aos nacionais uma autoridade indesmentível, mesmo que eles não saibam mais nada. Mas dá para diferenciar um tinto da península de Setúbal, do Alentejo ou do Douro; dá para impingir um Alvarinho ou um branco seco ribatejano. Como explicar um país tão pequeno com uma tamanha variedade de vinhos? Um mundo, comparado com o das monocastas. E, em terra de cegos, já dá para reinar.

Não é difícil imaginar uma linha de exportação de produtos de primeira qualidade para a América do sul: queijo de Azeitão, Serpa ou da Serra, para quem está habituado a queijo de Minas, ou a imitação de Gorgonzola, é uma benção dos céus. Como fazer um arroz de pato sem chouriço e farinheira? Faz toda a diferença, para quem o tempera com azeite. Porventura espanhol...! E o cobre com “linguiça calabresa” que nem gordura tem para derreter, no forno, para dentro do arroz: mais parece salsicha fresca.

A classe média brasileira não é diferente das outras: pela-se pelo que é estrangeiro, exótico. Como não deixar descascar o camarão gigante, nem corta-lhe a cabeça. Surpresa é grelhá-lo inteiro na chapa, bem pincelado, com um aiolizinho de se le chupar los dedos. E mais, e mais...
Sem dúvida, gastronomia é cultura. E como tal, deve estar inculcada nos nossos cromossomas. Mesmo que o não saibamos, um dia, a necessidade e o bom senso podem trazer tudo à superfície.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Moralmente mestiços

Todas as culturas, religiões ou credos possuem mitos fundadores. Nós, a Ocidente, têem-nos definido em função das fórmulas de sexuação. Charles Melman, em “A Identidade Histérica”, caracteriza a horda primitiva com um fundador (o Pai) não castrado e toda a sua prole, que passou pela castração. O lugar dos "mestres", por oposição aos "servidores", é autenticado pela referência ao fundador. Os que o ocupam legitimam a sua autoridade, mesmo não possuindo as qualidades requeridas para tal, desde uma autoridade fundadora, que procedeu à nomeação da linhagem. O acesso à linhagem dá-se através da passagem pela castração. A castração tem a sua origem na cena da refeição totémica ou cena do parricídio, que supõe, nas origens do totemismo, a existência de um pai violento e ciumento que reserva para si todas as fêmeas (por isso incastrado, porque não sofre nenhuma interdição). Esse pai todo-poderoso é quem dita as leis, cujas principais são: não matar o pai e não ter acesso a nenhuma das mulheres que lhe pertençam. Os filhos nutrem por esse pai um sentimento ambivalente: amam-no, respeitam-no e admiram-no, porque assim obtêm protecção; mas também o odeiam pela sua intensa autoridade, com a qual rivalizam.

Conforme vão crescendo, vão sendo expulsos, na medida em que podem representar um perigo para o patriarca tirano. Os irmãos expulsos reúnemse, matam o pai e devoram o seu cadáver, acabando, assim, com a horda primitiva. Em consequência disto, o pai morto adquire um poder muito maior do que tivera em vida. Também se reforçam os seus mandamentos, e ficam ainda mais ratificadas as suas leis, e é esse o ponto de partida das organizações sociais, das restrições morais e da religiosidade. A proibição funda-se na culpa dos filhos, após a morte do pai da horda primitiva, porque, ao nível do inconsciente, a Lei refere-se, antes de mais nada, a uma instância idealizada; ou, melhor, a Lei é referida em seu Nome (Nome-do-Pai). A partir daí, esta filiação, que impõe a castração (não ter acesso a todas as mulheres), é a operação que limita e ordena o desejo do sujeito.


Está bem. Mas será que isso é mesmo verdade para nós, portugueses? Na sua busca da identidade brasileira, Gilberto Freyre vai catá-la no português, claro. Usemos, então, Freyre, como testemunha imparcial, para tentar entender o que é um português. Nós somos o que fazemos, e o sucesso do português no Brasil é explicado, segundo Freyre (Casa Grande & Senzala), pelo seu passado étnico, “de povo indefinido entre a Europa e a África”: a influência africana fervendo sob a europeia e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, à religião.... um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao Cristianismo... Freyre cita Alexandre Herculano falando dos portugueses: “População indecisa no meio dos dois bandos de contendores (nazarenos e maometanos), meio cristã, meio sarracena, e que em ambos contava parentes, amigos, simpatias de crenças ou de costumes”. Há uma indecisão étnica e cultural entre a África e a Europa, bicontinentalidade que Freyre compara à bissexualidade no indivíduo. Em Portugal não há um tipo determinado, e é essa imprecisão que permite ao português reunir dentro de si tantos contrastes “impossíveis de se ajustarem num perfil mais definidamente gótico e europeu.”


Por outro lado, esse outro lugar, a colónia, onde vão estar reunidos, tanto os que não passaram pela castração, quanto aqueles em que a castração não está mais autenticada, caso do imigrante, segundo Melman, de nada adiantaria que, no seu país de origem, esse imigrante tivesse passado pela castração, pois, quando inserido numa cultura diferente, a castração deixaria de estar legitimada, o que o lançaria numa busca incessante de reconhecimento.
Com relação a esta dualidade que Melman refere, é preciso acrescentar que o imigrante traz consigo, da sua terra de origem, os mandatos paternos, que são, porém, alterados e transformados na nova terra, por efeito da passagem para uma nova cultura. É diferente dizer que o imigrante vem sem filiação e dizer que essa filiação sofre transformações. Por que é que ele abandonaria totalmente a ordenação fálica na travessia do Atlântico?

Convivem no português as duas culturas, a europeia e a africana, a católica e a maometana. Além disso, na formação da nação portuguesa há a presença semita, “gente de uma mobilidade, de uma plasticidade, de uma adaptabilidade tanto social como física que facilmente se encontram no português navegador e cosmopolita do sec. XV”. Freyre fala em “miscibilidade”, capacidade para a miscigenação que haveria no português: “a miscibilidade, mais do que a mobilidade foi o processo pelo qual os portugueses compensaram a deficiência de volume humano para a colonização em larga escala e sobre áreas extensíssimas”.

Contrariamente aos nórdicos, os portugueses mostraram aptidão para se adaptarem a regiões tropicais. Tudo isso fez com que triunfassem onde outros europeus fracassaram. E, com os casamentos com a mulher índia ou negra, formou-se uma população ainda mais adaptável ao clima tropical. Moralmente já eram mestiços e foi essa como que mestiçagem que lhes permitiu, na luta em que sucumbiam os fracos e tímidos, a fácil adaptação à vida colonial.


Em “Casa-grande & Senzala”, os portugueses são verdadeiros heróis, que deslocaram a “base tropical da pura extracção de riqueza mineral, vegetal ou animal”, o ouro, a prata, a madeira, o âmbar, o marfim, ”para a de criação local de riqueza”. Ainda que isso só fosse possível á custa da “perversão do instinto económico”, que tem a ver com o trabalho escravo e que desviou o português da produção para a exploração. Surge a “colónia de plantação”, o colono a fixar-se na terra. Surge a grande lavoura escravocrata e o aproveitamento da gente nativa, não só como instrumento de trabalho, mas como elemento de formação da família. Para Freyre, isso marca uma diferença em relação à política adotada pelos espanhóis no México e no Peru, onde foram exterminadores e segregacionistas, meros exploradores de minas de extracção.

Freyre louva os portugueses por se terem, de facto, instalado no Brasil. Mas louva, sobretudo, a ausência de um sistema rígido de administração, que teria sido uma das vantagens da colonização portuguesa. É a família e não o indivíduo ou o Estado o grande factor colonizador no Brasil. Daí constituir‑se no país a aristocracia colonial mais poderosa da América.

O facto é que o Brasil se formou sem a preocupação com a pureza da raça. O que, para Gilberto Freyre, constitui toda a força do Brasil. A única exigência para ir para Brasil era professar a religião cristã. Só se fazia questão da saúde religiosa.


Para Sergio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995), também é significativo o facto do Brasil ter origem numa nação ibérica: Portugal, como a Espanha, a Rússia e países balcânicos, são territórios através dos quais a Europa se comunica com outros mundos. É na comparação com os outros países europeus que ressalta, na Península Ibérica, a “cultura da personalidade”. É no valor que atribuem à pessoa humana que, para Buarque de Holanda, os portugueses e espanhóis “encontram muito de sua originalidade”. Daí também a dificuldade em achar, nesses países, associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos: “em terra onde todos são barões não é possível acordo colectivo durável a não ser por uma força exterior respeitável e temida”. Os privilégios feudais nunca tiveram muita importância na Península Ibérica. Para Sergio Buarque, a “bagunça” brasileira não é de hoje: “os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui....”.


Talvez não sejamos, portanto, tão devedores dos mitos fundadores ocidentais como nos têm querido fazer crer.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Impressionante

Escrever num blog não é muito diferente de meter uma mensagem numa garrafa e deitá-la ao mar para que alguém a encontre. Ninguém escreve para não ser lido. Mesmo quem esconde o diário na gaveta fechada à chave, tem, lá no fundo, a secreta esperança de que um dia lhe rebentem com a fechadura e lhe devassem as privacidades. Senão, porque escrevê-las? Nem às paredes confesso? Em letra de forma? Não acredito.

Um blog tem um acordo prévio com os leitores. Como tudo o que se escreve. E filma, e canta. A primeira cláusula desse acordo é o nome do autor. Quem o conhece sabe do que ele é capaz, sabe os riscos que corre ao lê-lo, e que pode, até, tirar algum prazer do acto. É portanto uma questão de empatia, anterior, ou não, ao nascimento do blog.
Outra cláusula será a qualidade do discurso de sensibilização dos afectos do leitor, não só no que se conta, como na forma de o fazer. Ninguém lê, vai ver um filme ou uma exposição de arte, ou ouve música, sem desejar ser mexido e remexido emocionalmente. Qualquer destas experiências transforma o leitor/espectador, que não pode ser o mesmo, no momento seguinte: qualquer nova incorporação põe em questão os equilíbrios anteriormente conquistados. E se assim não fôr, mais vale estar quieto. Tanto o autor, como o leitor/espectador.
Lemos, vemos filmes, ouvimos música, para termos as experiências sensoriais que não podemos viver. Para isso, a obra tem de atingir o nosso olhar/ouvido com inesperado fulgor, como um raio que funde obra e espectador/leitor numa nova forma de estar na vida, com o sentido e valores necessários para nos permitir continuar...

Este é o mundo da palavra, onde nos movemos diariamente sem grande esforço, mas que nem por isso nos exige menos rigor: a escolha do verbo exacto, do sentido bem fomulado, da subtileza que dá conta da nuance, ou mesmo do óbvio que, por contraste, nos pode fazer rir. Porque vivemos uma realidade manipulada, mascarada, onde muitas coisas podem desaparecer na premência dos objectivos, na cegueira da falta de informação, o autor tem a função fundamental de nos fazer ver. E sem querer colocar aqui o manto diáfano da fantasia contra a nudez forte da verdade, o que se esconde e o que se revela são faces da mesma moeda: do que nos impressiona e pode impressionar os outros.

Impressionar: deixar uma marca indelével. Comover.

O dia até lhe estava a correr bem. Depois, o despertador tocou...

Motivação, conflito, (re)solução: o que nos move, como nos debatemos para levar a água ao nosso moínho e como as coisas ficam, depois, sempre diferentes do que estavam. Se não mudarem, não vale a pena. Nem viver, nem contar. Tanto as nossas como as dos outros.

Saiu de casa a bater com a porta. Desta, não volto, num fio de voz quebrada por mais uma discussão que começara à hora do jantar.

Elipse: omissão de uma ou mais palavras que se subentendem. Pisou no acelerador para que o ronco do motor abafasse qualquer veleidade de pensamento. Ignorou os semáforos da Prudente de Morais, e depois os da Visconde de Pirajá, ninguém anda na rua a esta hora, e chegou à Lagoa. O piso húmido poderia ser desmotivador, mas nem um farol à vista num raio de ... num raio anatómico (relativo à estrutura do nosso corpo; à escala humana).
Eram tantas, as esperanças. Mas quando não se vestem as roupas adequadas e só se dizem as coisas erradas, antes de darmos por isso, já não dá para dizer o que foi a nossa vida, quais foram os nossos erros. Vai um carro ali à frente.

Metáfora: a parte pelo todo. Duas luzinhas vermelhas suspensas na noite, a meio metro do asfalto: um carro que circula à nossa frente. Que pena que não sejas para quem eu corro, mesmo que estejam paradas. Mesmo que estejam fora do eixo da via, mais vale levantar o pé.

O carro estava enfaixado numa árvore, com o radiador ainda fumegante a abraçar o tronco. Da árvore. O do condutor estava esmagado contra o volante e sabe-se lá até onde fora a coluna da direcção, dado o muito sangue empastado, ainda vivo, a reflectir a rara luz pública... E nada. Só o silvo da água quente a esguichar do radiador roto.
Depois, o toque de um telemóvel, a luz do écran a brilhar, ali, no meio dos pés presos na lataria retorcida. Antes do cérebro perceber o que a mão fazia, carregou na tecla verde e encostou o aparelho ao ouvido.

Amor, desculpa. Volta para casa. Gosto muito de ti...