A culinária tem destas coisas, como a leitura ou o cinema: vai-se provando, e, se não andarmos completamente distraídos, as coisas acabam por entrar lá para o fundo da memória e constituem uma camada de conhecimentos de que nem suspeitamos a existência.
O bacalhau, no Rio, é “português”, mesmo que seja da Terra Nova ou da Noruega. Mas um português que se preze, gosta de bacalhau. Devemos ser dos únicos povos cujo prato nacional é importado. Mas fama é fama, e é muito mais complicado ter de explicar que já tive de comer bacalhau cozido com grão ao almoço de domingo, durante toda a minha infância (eu sei que é um exagero, mas é assim que eu o sinto), e que odeio aqueles fios persistente que se entalam entre os dentes. Também não digo “pá” em cada frase que profiro: o que faz de mim, aos olhos dos brasileiros, mais finlandês do que português.
Há uma coisa que eu sei, e não preciso de ir ver ao Google, é que quem diz bacalhau, diz azeite: óleo extraído do fruto da oliveira, que, em português, outra particularidade, se diz azeitona, e não oliva: do árabe “al zeitun”, o fruto que dá o “al zeit”. Que também deu “aceite”, com que nuestros hermanos temperam a salada e enchem o cárter do carro. O que nem sequer está mal visto, já que convém usar nos carros óleo vegetal, porque não é explosivo. Daí eu tentar explicar aos brasileiros, como introdução à culinária portuguesa, que eles não vão querer ingerir óleo lubrificante, mistura da prensa da azeitona com óleos diversos do caroço e do bagaço: o azeite obtém-se na primeira prensa, e só assim é virgem. Da Terra Quente transmontana, ou do Alentejo. O melhor! Também é o mais caro nos supermercados do Rio, o que também é um argumento de peso para a burguesia carioca. Convém tecer umas loas, com ar desportivo, ao azeite cipriota: “dizem” que é do além. Nunca provei, mas também não há à venda no Rio. Num país em que mais de metade da população não paga impostos, o estado abate-se, que nem formiga em açucareiro, para taxar os produtos importados tão do gosto da classe média: os ricos que paguem a crise.
E porque é que não há azeite brasileiro? Estranho, não é, num país em que os portugueses puseram todo o seu engenho... Pois é! Mas se eles tivessem plantado oliveiras no Brasil, a metrópole não poderia vender azeite à colónia. Nem vinho, aliás. Sem esquecer o queijo, o fumeiro, chouriço, paio, linguiça... Assim, dá para entender a racionalidade da colonização do Brasil: cana de açúcar, sim, trazida da China e testada intensivamente na Madeira. Há lá espaço para isso. Bem escrevia Pero Vaz de Caminha na carta a el-rei D.Manuel: “Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela (na terra recém encontrada), ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!”. Além disso, ele gaba o arcaboiço dos nativos, bons para trabalhar a terra. Coitados: com a chegada das caravelas, passaram, de um dia para o outro, da idade da pedra à era do trabalho! Foi o fim do paraíso.
Depois da cana, os portugueses levaram os coqueiros, testados em Cabo Verde. E o gado zebu, levado da India: tudo que não cabia em Portugal e transformou o Brasil no maior produtor/exportador do mundo (açúcar, copra, óleo de coco, carne...).
Voltando ao bacalhau, qualquer atrazado mental sabe que ele é bom é a boiar em azeite (português) a ferver. Depois de cozido em leite para tirar o excedente de sal, grelhado na chapa do lado da pele, eventualmente envolvido em papel de estanho para não secar, e depois metido no forno, com batatas a murro! E muito alho. Nada de complicado, mas de efeito garantido. Junta-se-lhe um nome impronunciável para qualquer brasileiro que se preze, “à lagareiro”, e temos especialista!
Especialista em vinho, dá um bocado mais de trabalho. Vinho, começou há pouco tempo a produzir-se, no sul do Brasil. A casta escolhida foi a Touriga Nacional. Por ser resistente, dizem. Em tempos, só profissionais é que sabiam dessas coisas: castas. Os outros, bebiam. Com a chegada do vinho ao Novo Mundo, as castas tornaram-se moda, porque eles (lá no Novo Mundo) começaram pelo princípio: com uma só casta. Mas tinham de colocar vinho no mercado. Daí a popularidade dos Cabernet Sauvignon, dos Malbec e Merlot, consoante estamos na Califórnia, Argentina ou Chile. E os vinhos ficaram todos iguais. Todos? Não! Num cantinho da Europa, um pequeno povo resiste...
Se o vinho novo se caracteriza pela videira usada (entidade abstracta que confere uma identidade ao produto), o vinho português poderia ser uma “mistureba” para os brasileiros: como explicar-lhes que é feito com mistura de diversas castas? Só pelo gosto, produto de cultura milenar: argumento definitivo! Como o “terroir” dos franceses. Existe, e pronto. E confere aos nacionais uma autoridade indesmentível, mesmo que eles não saibam mais nada. Mas dá para diferenciar um tinto da península de Setúbal, do Alentejo ou do Douro; dá para impingir um Alvarinho ou um branco seco ribatejano. Como explicar um país tão pequeno com uma tamanha variedade de vinhos? Um mundo, comparado com o das monocastas. E, em terra de cegos, já dá para reinar.
Não é difícil imaginar uma linha de exportação de produtos de primeira qualidade para a América do sul: queijo de Azeitão, Serpa ou da Serra, para quem está habituado a queijo de Minas, ou a imitação de Gorgonzola, é uma benção dos céus. Como fazer um arroz de pato sem chouriço e farinheira? Faz toda a diferença, para quem o tempera com azeite. Porventura espanhol...! E o cobre com “linguiça calabresa” que nem gordura tem para derreter, no forno, para dentro do arroz: mais parece salsicha fresca.
A classe média brasileira não é diferente das outras: pela-se pelo que é estrangeiro, exótico. Como não deixar descascar o camarão gigante, nem corta-lhe a cabeça. Surpresa é grelhá-lo inteiro na chapa, bem pincelado, com um aiolizinho de se le chupar los dedos. E mais, e mais...
Sem dúvida, gastronomia é cultura. E como tal, deve estar inculcada nos nossos cromossomas. Mesmo que o não saibamos, um dia, a necessidade e o bom senso podem trazer tudo à superfície.