domingo, 24 de maio de 2009

O ópio do povo e a imagem do mal

Pondo fim a seis séculos de hesitações, Gutenberg juntou o papel criado na China, o tipo móvel usado na Coreia desde o século IX, e produziu a máquina que iria fazer entrar a humanidade na era moderna. Gutenberg tinha o que os chineses e coreanos não tinham: um alfabeto de 26 letras, o que facilitava imenso as coisas, e um best-seller: a Bíblia da igreja católica romana. Foi este último facto que possibilitou que a “invenção” da tipografia se tornasse uma inovação. Com efeito, qualquer invenção que não desperte o interesse da indústria, que não tenha a possibilidade de se tornar rentável, justificando o investimento, arrisca-se a apodrecer nas gavetas do inventor, sem vir a ver a luz dia. Não foi Gutenberg que ficou rico com a “sua” invenção: os financiadores a quem recorreu foram mais gananciosos do que ele. Mas isso não é importante para a civilização ocidental. Importa é que centenas, e depois milhares de pessoas puderam ler, pela primeira vez, o mesmo texto, sem a intermediação de padres ou confessores, sem o beneplácito ou a autorização (ou chancela do autor) da santa madre igreja, sem os “erros” de tradução ou adaptação dos copistas, que garantiam, até aí, a difusão rara e cara, dos textos sagrados. E isso mudou tudo.
Não é por acaso que a Igreja católica romana não gostou do invento: a autoridade dos seus representantes na Terra estava posta em causa. O poder já não se baseava no conhecimento dos textos, já que este corria o risco de se banalizar. Também não foi por acaso que foi instituído o
Index Librorum Prohibitorum ("Índice dos Livros Proibidos" ou "Lista dos Livros Proibidos"), lista de publicações proibidas pela Igreja Católica, consideradas "perniciosas", e que continha, também, as regras da igreja relativamente a livros. Não podendo “silenciar” o progresso, o poder usava a sua influência moral para desacreditar os textos que poderiam miná-lo. Houve gente a morrer na fogueira (vide Giordano Bruno) por não se conformar; à pala dele, Index, cientistas, filósofos, Galileu Galilei, Nicolau Copérnico, Vítor Hugo, foram silenciados e perseguidos. Pasme-se ou não, o Index só veio a desaparecer em 1966, com o papa Paulo VI. Já havia televisão, e tudo.
É sabido que a divulgação da Bíblia, possibilitada pela tipografia, ajudou os defensores da Reforma protestante. O cisma provocado por luteranos e calvinistas minou o poder secular da igreja de Roma, e dividiu o mundo ocidental.

Não foi por acaso que evoquei a tipografia no limiar da era moderna: com a impressão fixaram-se textos que nunca o tinham sido, como constituições, regras jurídicas, pactos, delimitação de fronteiras... Isto é, as regras podiam, a partir daí, ser do conhecimento geral e o poder arbitrário ficava mais limitado.

Também não foi por acaso que evoquei a indústria: a inovação é, muitas vezes, ou mesmo quase todas as vezes, uma questão de investimento, com o lucro como objectivo. E investe quem tem os meios para o fazer, mormente, dinheiro. E isto também é verdade para os meios de comunicação, imprensa, rádio e televisão.

Os meios de comunicação tornaram-se necessários quando a
Ágora se tornou insuficiente para o “poder” se dirigir aos cidadãos. Candidatos, eleitos e leaders (ou líderes) de opinião, precisam de veicular as suas “mensagens” políticas (de pólis: cidade), culturais ou comerciais. A voz deles tem de chegar ao “povo”, aos eleitores, aos consumidores. E o “acaso” faz bem as coisas: o estado, com o "seu" espaço hertziano, e o poder económico, com os seus meios de produção, detêm os meios de comunicação e portanto, é por eles que falam os leaders (ou líderes) políticos, culturais, e comerciais. Imprensa, rádio e televisão são meios de comunicação de sentido único: fala quem pode, ouve quem deve, e a ordem está assegurada.

Segundo Jürgen Habermas (
A Mudança Estrutural da Esfera Pública, 1962), duas esferas coexistem na sociedade: o sistema e o mundo da vida. O sistema refere-se à “reprodução material”, regida pela lógica instrumental (adequação dos meios aos fins), incorporada nas relações hierárquicas (poder político) e de intercâmbio (economia). O mundo da vida é a esfera de “reprodução simbólica”, da linguagem, das redes de significados que compõem determinada visão de mundo, sejam eles referentes aos factos objectivos, às normas sociais ou aos conteúdos subjectivos. Habermas produz o diagnóstico da colonização do mundo da vida pelo sistema e da crescente instrumentalização desencadeada pela modernidade, sobretudo com o surgimento do "direito positivo", que reserva o debate normativo a técnicos e especialistas: um século de imprensa, depois rádio, depois televisão, transformou os “consumidores” numa massa mais ou menos homogénea: todos, cada um no seu canto, ouvem o mesmo discurso; todos, cada um em sua casa, assistem ao mesmo espectáculo da política; todos, isolados mas unidos na fé, acreditam nas mesmas coisas.

E cadê a opinião pública? Ora bem, não duvido que o público, cada um no seu cantinho, tenha a sua opinião acerca das coisas. Mas estas opiniões dispersas não têm como se juntar e constituir uma força homogénea já que, como vimos, o “público” não possui os meios para veicular e confrontar as SUAS opiniões. A “crítica” da opinião pública está feita (Pierre Bourdieu,
L'opinion publique n'existe pas, Noroit - 1971), não vou insistir no assunto.

Em "Uma Contribuição para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel" (1844), Marx diz que o sofrimento religioso é, a um único e mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas. É o ópio do povo. A imagem ficou e transformou-se na metáfora do entorpecimento das “massas”.
Durante muito tempo, parafraseando uma conhecida editora de discos, His Master’s Voice, o poder, tanto político como económico, representava-se a si próprio, com o discurso da legitimidade contra os inimigos do “poder”, da “normalidade”, e da fé. Os perigos da “anormalidade” eram suficientes para manter o medo, a ansiedade e a dúvida que congregam e cimentam as solidariedades.
Com a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, proclamou-se “O fim da história” (Francis Fukuyama, 1992). É uma linha de abordagem da história, de Platão a Nietzsche, passando por Kant e Hegel, destinada a revigorar a tese de que o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da humanidade, ou seja, de que a humanidade teria atingido, no final do século XX, o ponto culminante da sua evolução com o triunfo da democracia liberal ocidental sobre todos os demais sistemas e ideologias concorrentes. Com efeito, tendo este século visto, primeiro, a destruição do fascismo e, em seguida, do socialismo, que foi o grande adversário do capitalismo e do liberalismo no pós-guerra, o mundo teria assistido ao fim e ao descrédito dessas duas alternativas globais, restando apenas, actualmente, em oposição à proposta capitalista liberal, resíduos de nacionalismos, sem possibilidade de significarem um projecto para a humanidade, e o fundamentalismo islâmico, confinado ao Oriente e a países periféricos. Assim, com a derrocada do socialismo, Fukuyama conclui que a democracia liberal ocidental firmou-se como a solução final do governo humano, significando, nesse sentido, o "fim da história" da humanidade.

Então, que receios, ansiedades e dúvidas poderão continuar a manter a firmeza da “congregação”? Que novos “ópios do povo” poderão ser utilizados para garantir a firmeza dos “fiéis”? Para já, o medo do fundamentalismo islâmico, claro! Desde o 11 de Setembro que sabemos isso. Depois, o terror do desastre anunciado que o progresso está a provocar na natureza: são os fundamentos do conforto moderno que são postos em causa. Se não bastar, arranjam-se umas pandemias (gripes das aves, dos suínos), uns escândalos (Casa Pia) que mexem nos fundamentos das filosofias de brandos costumes; as agressões contra o santo dos santos que é o nosso corpo (tabagismo, colesterol, etc), o poder criativo não precisa de ter limites. Claro que tudo bem condimentado com muita verdade, já que, muita gente o sabe, só assim se produz uma grande mentira. E não é muito complicado, porque quem não sabe nada, acredita em tudo.

Onde é que a porca torce o rabo? Pois é: a tecnologia soltou-se, fugiu ao controle e voltou a pôr os fiéis a falar uns com os outros, coisa que não acontecia há muito tempo. Opiniões podem ser confrontadas, factos podem ser pesquisados, mentiras podem ser reveladas. Instalou-se o caos na esfera pública, como diz Habermas (2006). O discurso já não está só reservado a técnicos e especialistas. Que grande nóia! Os fiéis já não estão controlados? E como todas as pandemias, isto pode generalizar-se! E agora? Como manter o discurso massificado? Colocando uma mordaça na net, claro! Colocando a internet no jogo dos meios de comunicação tradicionais, imprensa, rádio e televisão, com mediação dos conteúdos, acesso restrito a canais programados e "tempo de antena" reservado a “técnicos e especialistas” encartados e reconhecidos. A blogoesfera é a nova imagem do mal.

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