terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Moralmente mestiços

Todas as culturas, religiões ou credos possuem mitos fundadores. Nós, a Ocidente, têem-nos definido em função das fórmulas de sexuação. Charles Melman, em “A Identidade Histérica”, caracteriza a horda primitiva com um fundador (o Pai) não castrado e toda a sua prole, que passou pela castração. O lugar dos "mestres", por oposição aos "servidores", é autenticado pela referência ao fundador. Os que o ocupam legitimam a sua autoridade, mesmo não possuindo as qualidades requeridas para tal, desde uma autoridade fundadora, que procedeu à nomeação da linhagem. O acesso à linhagem dá-se através da passagem pela castração. A castração tem a sua origem na cena da refeição totémica ou cena do parricídio, que supõe, nas origens do totemismo, a existência de um pai violento e ciumento que reserva para si todas as fêmeas (por isso incastrado, porque não sofre nenhuma interdição). Esse pai todo-poderoso é quem dita as leis, cujas principais são: não matar o pai e não ter acesso a nenhuma das mulheres que lhe pertençam. Os filhos nutrem por esse pai um sentimento ambivalente: amam-no, respeitam-no e admiram-no, porque assim obtêm protecção; mas também o odeiam pela sua intensa autoridade, com a qual rivalizam.

Conforme vão crescendo, vão sendo expulsos, na medida em que podem representar um perigo para o patriarca tirano. Os irmãos expulsos reúnemse, matam o pai e devoram o seu cadáver, acabando, assim, com a horda primitiva. Em consequência disto, o pai morto adquire um poder muito maior do que tivera em vida. Também se reforçam os seus mandamentos, e ficam ainda mais ratificadas as suas leis, e é esse o ponto de partida das organizações sociais, das restrições morais e da religiosidade. A proibição funda-se na culpa dos filhos, após a morte do pai da horda primitiva, porque, ao nível do inconsciente, a Lei refere-se, antes de mais nada, a uma instância idealizada; ou, melhor, a Lei é referida em seu Nome (Nome-do-Pai). A partir daí, esta filiação, que impõe a castração (não ter acesso a todas as mulheres), é a operação que limita e ordena o desejo do sujeito.


Está bem. Mas será que isso é mesmo verdade para nós, portugueses? Na sua busca da identidade brasileira, Gilberto Freyre vai catá-la no português, claro. Usemos, então, Freyre, como testemunha imparcial, para tentar entender o que é um português. Nós somos o que fazemos, e o sucesso do português no Brasil é explicado, segundo Freyre (Casa Grande & Senzala), pelo seu passado étnico, “de povo indefinido entre a Europa e a África”: a influência africana fervendo sob a europeia e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, à religião.... um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao Cristianismo... Freyre cita Alexandre Herculano falando dos portugueses: “População indecisa no meio dos dois bandos de contendores (nazarenos e maometanos), meio cristã, meio sarracena, e que em ambos contava parentes, amigos, simpatias de crenças ou de costumes”. Há uma indecisão étnica e cultural entre a África e a Europa, bicontinentalidade que Freyre compara à bissexualidade no indivíduo. Em Portugal não há um tipo determinado, e é essa imprecisão que permite ao português reunir dentro de si tantos contrastes “impossíveis de se ajustarem num perfil mais definidamente gótico e europeu.”


Por outro lado, esse outro lugar, a colónia, onde vão estar reunidos, tanto os que não passaram pela castração, quanto aqueles em que a castração não está mais autenticada, caso do imigrante, segundo Melman, de nada adiantaria que, no seu país de origem, esse imigrante tivesse passado pela castração, pois, quando inserido numa cultura diferente, a castração deixaria de estar legitimada, o que o lançaria numa busca incessante de reconhecimento.
Com relação a esta dualidade que Melman refere, é preciso acrescentar que o imigrante traz consigo, da sua terra de origem, os mandatos paternos, que são, porém, alterados e transformados na nova terra, por efeito da passagem para uma nova cultura. É diferente dizer que o imigrante vem sem filiação e dizer que essa filiação sofre transformações. Por que é que ele abandonaria totalmente a ordenação fálica na travessia do Atlântico?

Convivem no português as duas culturas, a europeia e a africana, a católica e a maometana. Além disso, na formação da nação portuguesa há a presença semita, “gente de uma mobilidade, de uma plasticidade, de uma adaptabilidade tanto social como física que facilmente se encontram no português navegador e cosmopolita do sec. XV”. Freyre fala em “miscibilidade”, capacidade para a miscigenação que haveria no português: “a miscibilidade, mais do que a mobilidade foi o processo pelo qual os portugueses compensaram a deficiência de volume humano para a colonização em larga escala e sobre áreas extensíssimas”.

Contrariamente aos nórdicos, os portugueses mostraram aptidão para se adaptarem a regiões tropicais. Tudo isso fez com que triunfassem onde outros europeus fracassaram. E, com os casamentos com a mulher índia ou negra, formou-se uma população ainda mais adaptável ao clima tropical. Moralmente já eram mestiços e foi essa como que mestiçagem que lhes permitiu, na luta em que sucumbiam os fracos e tímidos, a fácil adaptação à vida colonial.


Em “Casa-grande & Senzala”, os portugueses são verdadeiros heróis, que deslocaram a “base tropical da pura extracção de riqueza mineral, vegetal ou animal”, o ouro, a prata, a madeira, o âmbar, o marfim, ”para a de criação local de riqueza”. Ainda que isso só fosse possível á custa da “perversão do instinto económico”, que tem a ver com o trabalho escravo e que desviou o português da produção para a exploração. Surge a “colónia de plantação”, o colono a fixar-se na terra. Surge a grande lavoura escravocrata e o aproveitamento da gente nativa, não só como instrumento de trabalho, mas como elemento de formação da família. Para Freyre, isso marca uma diferença em relação à política adotada pelos espanhóis no México e no Peru, onde foram exterminadores e segregacionistas, meros exploradores de minas de extracção.

Freyre louva os portugueses por se terem, de facto, instalado no Brasil. Mas louva, sobretudo, a ausência de um sistema rígido de administração, que teria sido uma das vantagens da colonização portuguesa. É a família e não o indivíduo ou o Estado o grande factor colonizador no Brasil. Daí constituir‑se no país a aristocracia colonial mais poderosa da América.

O facto é que o Brasil se formou sem a preocupação com a pureza da raça. O que, para Gilberto Freyre, constitui toda a força do Brasil. A única exigência para ir para Brasil era professar a religião cristã. Só se fazia questão da saúde religiosa.


Para Sergio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995), também é significativo o facto do Brasil ter origem numa nação ibérica: Portugal, como a Espanha, a Rússia e países balcânicos, são territórios através dos quais a Europa se comunica com outros mundos. É na comparação com os outros países europeus que ressalta, na Península Ibérica, a “cultura da personalidade”. É no valor que atribuem à pessoa humana que, para Buarque de Holanda, os portugueses e espanhóis “encontram muito de sua originalidade”. Daí também a dificuldade em achar, nesses países, associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos: “em terra onde todos são barões não é possível acordo colectivo durável a não ser por uma força exterior respeitável e temida”. Os privilégios feudais nunca tiveram muita importância na Península Ibérica. Para Sergio Buarque, a “bagunça” brasileira não é de hoje: “os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui....”.


Talvez não sejamos, portanto, tão devedores dos mitos fundadores ocidentais como nos têm querido fazer crer.

3 comentários:

Mac disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mac disse...

Gostei. Não me tinha debruçado about, mas está bem pensado.

Vera Santana disse...

Casa Grande e Senzala é um grande livro. Gostaria muito de me explanar (e espalhar)por estes temas. A começar pela relação entre totem e parricídio e tabu, contestada por alguns. O Freud não escreveu tudo direitinho.

Sublinho a importância - justamente sublinhada no teu texto - da família e da religião na construção do Brasil, importância que eu estendo ao continente americano, de Sul a Norte. Brasileiros ou Estado-unienses são povos religiosos. De fé inicialmente católica, no Sul, protestante, no Norte. E temos os deuses de Cuba que são uma fusão entre o catolicismo e as práticas e representações religiosas vindas de África.

Concordo: as cosmovisões não morrem quando transportadas para outros lugares. Camaleoneiam e alimentam-se de novos dados. Estes ancoram no que lhes é anterior. Por isso, tantas vezes as pessoas (e os povos?) sofrem fortes dissonâncias cognitivas; quando não conseguem integrar visões que se antagonizam.

Uma questão: mais do que as organizações são as instituições que se vão fundar a partir do permitido e do interdito ou, chamando Durkheim, do profano e do sagrado. Sagrado que não é religioso.

O Brasil tem, creio, uma forte componente fundadora no positivismo comteano. Está inscrito na bandeira do país. Não sei quão actuante é, ainda, o positivismo, mas julgo saber que há Igrejas (templos) positivistas no Brasil.