terça-feira, 29 de junho de 2010

Vida de artista

Há profissões que mais vale disfarçar, de tal maneira vivem (mal) no imaginário das pessoas. Um (outrora) afamado publicitário francês, de seu nome Jacques Séguéla, chegou a escrever um livro que intitulou "Não digam à minha mãe que trabalho na publicidade, ela julga que toco piano num bordel". O livro não vem ao caso, e do Séguela, eu devo ser uma das três pessoas que se lembram dele, incluindo a mãe. É claro que há muitas "classes" de artistas, e hoje, até um jogador de futebol pode ostentar com orgulho a profissão, desde que jogue na primeira divisão, participe em competições europeias ou guie um Ferrari. Quando deixa de jogar, que é um acontecimento corrente ainda dentro dos prazos de validade para muitos artistas, é que a porca torce o rabo: "ex-futebolista" não é ocupação para ninguém! Ou será só para alguns.

Em regra geral, um artista é um artesão multi-disciplinar, o que torna a etiqueta ainda mais difícil. Um violinista que componha, mesmo depois de ser "executado" em público, ou editado em CD, vai continuar a confessar-se violinista, para facilitar as coisas. Um instumentista, em princípio, para o ser, está integrado numa orquestra, está obrigado a horários colectivos, recebe um estipêndio (mais o menos) regular. Um violinista sem orquestra, ou é uma vedeta internacional, ou é só mais um artista. Tal e qual como o futebolista.

Venho de uma linhagem de artistas. O meu avô, casapiano, entrou para o Real Conservatório de Música aos 13 anos, e acabou a tocar trombone na banda da Guarda Municipal de Lisboa. Também pintava umas paisagens, mas isso era normal, antes da invenção da televisão. Quando faleceu, aos 46 anos, deixou viúva e quatro filhos ao deus-dará. O mais velho, o meu tio João, foi trabalhar, aos 16 anos, para sustentar aquilo tudo. Foi boxeur, e acabou como pianista em ambientes enfumados e ruidosos. Não propriamente como o Séguéla, mas não andava longe. O facto de ainda hoje se cantarem, e tocarem, algumas marchas de Lisboa que compôs em parceria com a minha tia Manuela, não lhe garantiu um fim de vida brilhante.
As minhas duas tias, Teresa e Júlia, foram cantoras da rádio (continuamos na era pré-televisão) e chegaram a ser vedetas em capas de revista. O meu pai era um excelente pianista e chegou a acompanhá-las. Ele foi o único que andou na universidade. Licenciou-se matemático, engenheiro geógrafo, e em física, mais propriamente, geofísica, e iniciou uma brilhante carreira científica que durou até a ditadura ter desbaratado (em 1948-1949) todos os grupos organizados de estudo e reflexão, ter obrigado ao desemprego, ao exílio, e até preso, nomes fundamentais da ciência portuguesa, seus companheiros das Gazetas de Matemática, e outros fundadores da Sociedade Portuguesa de Matemática (Zaluar Nunes, João de Freitas Branco, Bento de Jesus Caraça, entre outros). Foi ensinar. Pouco tempo depois, já nem no ensino oficial podia trabalhar. Valeu o Liceu Francês Charles Lepierre. Até ao fim. Mas, apesar de excelente pedagogo, e de persistir na memória de centenas de alunos dele, a sua grande paixão foi a pintura. Presente em inúmeras colecções particulares, e em alguns museus (CAM, Museu do Chiado, Abade de Baçal, etc), premiado em Bienais, bolseiro da Gulbenkian, dirigente anos e anos a fio, da Sociedade Nacional de Belas Artes, continuou, até ao fim (aos 47 anos) a ser professor: só é pintor num meio muito restrito. E eu entendo isto muito bem. Premiado várias vezes como o melhor realizador de filmes publicitários, com filmes premiados em festivais, e não só de publicidade, com um currículo longo (nos anos) de actividade no mundo genérico do espectáculo, enquanto dei (acessoriamente) aulas no curso de cinema da Universidade Moderna, quando me perguntavam o que eu fazia, respondia automaticamente: sou professor! O problema era se me perguntavam "de quê".

Mesmo no cinema, existem profissões confessáveis: director de fotografia, engenheiro de som, editor (cá, diz-se montador), electricista, decorador. Mas estou em crer que é só uma questão semântica: um director continua a ser um director, mesmo que não se saiba de quê; um engenheiro, idem! É como quando alguém se confessa médico: para a maior parte das pessoas é mais do que o suficiente. Se trata de crianças, de malucos, ou de cataratas, a questão é de somenos. Como um advogado. Ou o tal engenheiro.
Se alguém tem a coragem de se confessar pintor, o mais normal da vida é perguntarem-lhe do que é que vive, como é que sustenta a família.
Eu concordo que ser realizador de cinema, em Portugal, como na maior parte dos países do mundo, não é uma profissão estável. Nem chega a ser uma profissão. É mais um "hobby". Tal e qual como a pintura. Porque a remuneração é errática, porque a ocupação é mais do que precária. Acordemos que é artesanato. E realizador de sucesso é como futebolista: tem prazo.
Hawks e Ford recebiam ordenado dos estúdios para "dirigir" os filmes que lhes mandavam dirigir. Pegavam às 9 e saiam às 7, depois de meter na lata x cenas por dia, aquelas que a produção estimava necessárias para garantir o respeito do orçamento e dos seus (deles, produtores) lucros. A nova geração (Lucas, Coppola, Spielberg) são produtores, donos ou accionistas de estúdios. Mesmo que (alguns) vivam na montanha russa, só são realizadores de vez em quando.

Ser realizador E produtor, é uma esquizofrenia delirante: enquanto o produtor tudo faz para conter os custos dentro dos limites do orçamento, o realizador quer, exige, mais e mais, para garantir a glória da obra. Mesmo quando se trata de uma encomenda. É uma luta sem quartel. Ó vida difícil!

Tirando as encomendas fechadas, são raros os produtos audiovisuais que se pagam a si próprios. Necessitam de uma enorme panóplia de acessórios, merchandising, contratos leoninos de distribuição, etc. Um produto audiovisual é cada vez menos um produto comercial por si só: é mais um suporte publicitário, um veículo promocional, uma parte de campanha, uma montra de talentos, um catálogo de muitas coisas. E, por isso, o produtor é cada vez mais um funâmbulo, um malabarista, com mais bolas no ar do que as que consegue ter na mão. É um pedinte, um vendedor de sonhos. E é o realizador que lhe garante a concretização dos sonhos dos outros.

A indústria de conteúdos, da cultura, como se diz agora, representa qualquer coisa como 3 por cento do PIB europeu, e (sub-)emprega cerca de 5 milhões de pessoas. Mais do que a indústria automóvel. Mas ninguém tem vergonha de se confessar soldador na Auto-Europa. Mas são aqueles "artistas" que nos garantem a evasão, e a vivência de experiêncas que a nossa curta vida não nos permite viver. É um serviço social que abarca muitas áreas, da educação à saúde mental, essencialmente porque a arte questiona as fantasias. Devemos-lhes muito. E é por isso que fico piurso quando leio e ouço chamar parasitas, chulos, e outros mimos, aos que optaram por uma vida aos trancos, sempre difícil, que eu sei, para garantir os sonhos. Os deles, e os dos outros. Lembro-me, sempre, de Goebbels, ministro da propaganda de Hitler: “quando ouço a palavra cultura, saco logo da minha pistola”. Para mim, é fascismo primário. O poder receia o conhecimento e a cultura, porque são meios de libertação. E por isso, mesmo em sociedades ditas democráticas, tudo faz para controlar o financiamento da dita cultura.

5 comentários:

Mac disse...

Adorei a tua história, o enquadramento e o resultado ;-)

Tens que escrever mais vezes, sim?

Vera Santana disse...

Olá, Zé Pedro.

A J.R.chamou-me a atenção para o teu novo post que vim ler.
Concordo em muitos - quase todos - aspectos e partilho o teu sentimento sobre a precariedade dos artistas em Portugal e das suas Vidas. :-((

Mas há um aspecto que se transformou, sobretudo nas novas gerações. Hoje há, ao contrário do que tu dizes, muitas pessoas que são e se intitulam "artistas" e a sociedade reconhece-os como tal. Porque as indústrias culturais ganharam uma enorme força, porque há mais tempos livres para aqueles que se reformaram aos 40 e aos 50, porque a cultura passou a ser um bem de consumo {muitos consomem, poucos são amadores no sentido de possuírem conhecimentos específicos sobre a(s) arte(s)}. Porque, como diz um sociólogo da cultura, a actividade / profissão artística é, hoje, o modelo que outras profissões seguem, ao adoptarem conjuntamente as características de criatividade e de precariedade próprias das profissões / actividades artísticas.

Gostei dos fragmentos biográficos da família A. S.

Um abraço amigo,

Vera

magda disse...

Pois é, gostava de saber como dormiu a Ministra Gabriela Canavilhas quando anunciou aos seus colegas (artistas) a baixa de verbas que vai haver para a cultura.
Estamos na era da economia, tudo se traduz em verbas, mas será a cultura e as obras de arte (toda)que vão ficar para as gerações futuras, como hoje vemos e aprendemos com o que nos deixaram gregos, romanos e dos vários séculos que nos antecederam.
Que bom ler em tão pouco tempo dois textos teus.
Escreve mais, a escrita como arte (e tu escreves muito bem) mas também como grito de protesto para se fazer ouvir!

RITA disse...

Adorei!!! Mais palavras para quê?
Bjs
Rita

ZPedro disse...

Pois é, Vera: em meios "polidos" não tenho dúvidas que assim seja. Mas os comentários trogloditas não prevêem daí, mas sim da grande maioria do "povo português", chamado (por quem? Quem precisa de tal apoio?) a pronunciar-se... Falta de educação, claro.