sexta-feira, 18 de junho de 2010

Da utilidade das efemérides. E dos mitos!

No dia da morte de Saramago, "arrumaram-se" uma série de coisas que por aqui andavam, há uns dias, aos tralhos: foi o aniversário da morte de Cunhal, no dia de Sto.António, o dia de aniversário do meu pai, e, possivelmente, algumas outras recordações, que nos atristam e alegram, mas que não vêm aqui ao caso.
As efemérides existem porque existe comunicação social: nós (já) não temos memória para tanta coisa. E se servem para vender papel, têm, também, um (papel) importante na formação da memória colectiva.

Conheci Cunhal na gravação de um tempo de antena, numa campanha eleitoral de que já não me lembro. Quando digo que o conheci, quero dizer que travei conhecimento pessoal, entre quatro olhos (os meus e os dele), com intercâmbio oral de palavras e conceitos, porque eu sabia, há muito tempo, quem ele era: eu andava a fazer a 4ª classe quando ele fugiu de Peniche, mas essa recordação está bem viva na minha memória. Nesse tempo, não estávamos (in)formados pela televisão, e este tipo de factos eram veiculados por pessoas que nos mereciam o maior respeito e credibilidade: pai, irmão mais velho... Sem conhecer os pormenores, não duvido que essa fuga, certamente maquilhada, na minha imaginação, com os floreados românticos das leituras de Salgari, perdurou, durante a minha adolescência, como um ícone da liberdade, da resistência, da independência e da coragem. Assim se fazem os mitos.

Voltando ao tempo de antena "histórico", eu tinha sido informado que o camarada chegaria a tal hora ao estúdio, gravaria o que tinha a gravar para o programa, e sairia no menor prazo possível. Isto queria dizer que tudo deveria estar pronto para a gravação quando ele chegasse: o tempo do camarada estava minuciosa e rigorosamente contado. E assim aconteceu. No fim da gravação, fomos à "régie" visionar a coisa, e aí se deu o "conflito". Eu não estava preocupado com o que o camarada poderia ter dito, já que não me passaria pela cabeça que ele não soubesse o que tinha a dizer. O que me "preocupava" era a imagem do camarada. Eu trabalhava em publicidade, e essa preocupação era permanente. E, neste caso, primordial. Gelei quando vi que, apesar da preparação cuidada do cenário, da captação do som, e da luz, não tivera tempo de acertar alguns pormenores. A coisa tinha sido "despachada" sem ensaios nem repetições, e a luz, correctamente afinada para uma pessoa "normal", esbarrava na proeminente arcada supraciliar do Cunhal, e não lhe chegava aos olhos. Resultado: os olhos do camarada estavam encovados num buraco escuro, e mal se viam. Anunciei que teríamos de repetir. A reacção do camarada foi pronta: "Porquê? Eu disse alguma coisa errada?" Que não, expliquei-lhe. "Ah bom. Se é para ficar mais bonito, não vale a pena." E foi-se embora.

Fiquei piurso. E queixei-me ao Comité Central, mais concretamente à Informação e Propaganda: não punha em questão a autoridade do camarada em matéria de conteúdos, mas na imagem dele, quam mandava era eu! Não sei o que lhe disseram, mas no dia seguinte, o camarada veio sentar-se ao meu lado, à mesa do refeitório, e perguntou-me que camisa é que havia de vestir para o comício dessa tarde. É evidente que ele sabia muito bem que camisa é que ia vestir, mas este "pedido de desculpa" fechou o conflito, e abriu portas até aí fechadas a cadeado.

Nos dias que se seguiram, houve várias conversas em que nunca se falou de política, mas sim de cinema, de arte em geral. Era, no mínimo surpreendente que uma pessoa que eu julgava que vivia em estado de (quase) clausura (tanto no sentido figurado, como no real) tivesse visto (ao vivo) tanta coisa, e se tivesse debruçado sobre elas com tanta profundidade. Eram coisas que lhe davam prazer. Eu lembrava-me do meu pai a explicar-me, menino, o "Pedro e o Lobo", de Prokofiev, "A história do soldado", de Stravinsky, ou as manchas coloridas que compunha na tela sempre presente no cavalete. E falava-me de Braque, de Gauguin. Isto é, a história é sempre colectiva. Mas é na maneira de a vermos, e de a usarmos, de a exprimir, de nos apropriarmos dessa experiência, que nos tornamos singulares. Como Saramago a contar a história de Joana Carda, ou de Baltasar Mateus, o Sete-Sóis. Ele é dos 3, o que tinha as emoções e sentimentos mais próximos da boca. Ouvi-o, mais do que uma vez, no hotel Vitória, em entrevistas, a exprimi-los, por desagrado ou satisfação, com a preocupação visível do rigor, na escolha dos termos e da forma, sem receio de que alguma singularidade, sinal inequívoco de independência, pusesse qualquer lealdade em questão.

As pessoas transformam-se na comunicação. Um contador de histórias, um professor, um milongueiro, ganham vulto com a quantidade de pormenores úteis carreados para a conversa/texto. O conhecimento, a memória, a maneira de ligar os factos, a precisão dos termos, são factores de encantamento para o ouvinte, para o leitor. Acho que disto, ninguém tem dúvida. E não é só uma questão enciclopédica, nem semântica: o entusiasmo, o prazer do contador transmite-se de forma contagiante e envolve o discurso, que ganha uma carga fantástica (de fantasia).

Eu penso que ninguém adquire conhecimento só por curiosidade: o desejo de partilha está sempre presente. Porque é da partilha que se tiram, provavelmente, os maiores dividendos, como o tal "encantamento" do interlocutor/leitor pelo que é, evidentemente, singular. Este retorno é, talvez, o melhor prémio do curioso. Não será por acaso que uma das coisas com que Cunhal mais engalinhava (no âmbito da "nossa" colaboração), era a banalização do(s) seu(s) discursos(s) pela comunicação social, a chamada "cassete", que é, talvez, a invenção mais redutora de um discurso que possa haver: filme-se um candidato em campanha eleitoral nos seis comícios em que discursa durante o dia. Monte-se a mesma passagem da intervenção em cada um dos seis comícios, umas mais cansadas, roucas, ou titubeantes que outras, e aí temos a "cassete" a ser difundida para milhões de telespectadores. É merdoso, é propositado, é terrorista, porque visa concretamente anular o encantamento dos espectadores, por ser chato, por ser pateta, e, daí, destruir a imagem do protagonista. Mas é, muitas vezes, a paga que se recebe por uma atitude inteligente. E singular. E independente.

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