segunda-feira, 25 de maio de 2009

Ainda a verdade da mentira

Andava com aquela coisa atravessada, e parecia não querer sair. Agora que foi despejada, podemos voltar à vaca fria.

Aquele joguinho da verdade e da mentira acerca de nós mesmos, pareceu-me uma ideia divertida, à partida. Mas não deu grandes resultados. Acho eu. Dependendo da forma como nos imaginamos, e da plateia de que dispomos, todos nós abrilhantamos, de uma maneira ou de outra, o nosso currículo. Coisas sem a mínima importância transformam-se em função dos interlcutores, e constatamos que eventos que foram, para nós, de grande relevo e emoção, desinteressam por completo os outros. O que, por vezes, se torna uma grande desilusão. É por isso que acho que qualquer biografia é um exercício de ficção: quem conta um conto, acrescenta um ponto. Ou mais. Mas a ficção, ao contrário da realidade, tem de fazer sentido, tem de ser credível para ganhar audiência. Não se criam novos mundos com essa facilidade toda. Continuando agarrado a Orson Welles, para quem uma grande mentira tem de ser construída com muita verdade, vamos lá descascar as minhas nove afirmações e confrontá-las com as (poucas) reacções que receberam. Aqui vai, a pedido de várias famílias.

1. Não é verdade que tenha ido de avião, para outro país, sem bilhete, sem passaporte, nem muda de roupa. Mas não fui porque corria o risco de arranjar um monte de sarilhos, e acagacei-me. Estive dentro do avião, e podia ter ido. E não era um avião qualquer. Tinha a bordo quase todo o governo português da altura (junho de 1975) e grande parte dos Conselheiros da Revolução, a caminho das cerimónias da independência de Moçambique. Uma parte da equipe com que estava a trabalhar ia viajar nele legitimamente. Entrámos a filmar algumas entrevistas (Otelo Saraiva de carvalho, Álvaro Cunhal, Francisco Pereira de Moura, Carlos Fabião) e quando soou o aviso para os passageiros ocuparem os seus lugares, podia ter ocupado um qualquer. Outro elemento da equipe que não era para ir, de nacionalidade belga, ficou. Eu saí do avião discretamente e sentei-me no carro, cá fora, à espera dele. Mas o avião partiu com ele, como poderia ter partido comigo. A realidade é que ainda era a PIDE portuguesa que controlava o aeroporto de Maputo, e eu não quis correr o risco de passar os dias que lá ficasse dentro de uma prisão africana.

2. Foi um agente da PSP que me abriu o carro fechado, com a chave na ignição, sem perguntas, nem desconfianças. Tinha chegado, tarde e más horas, ao saudoso cinema Império, para uma matinée. Com a pressa, fechei o carro sem tirar a chave, o que era possível em vários modelos, neste caso, um carocha. Saí do cinema já de noite e comecei a escarafunchar na janelinha da frente, a tentar uma coisa que nunca fizera e de que não tinha a mínima experiência. Quando o "creme Nivea" parou ali ao lado, pensei que me fossem multar por ter estacionado, para lá do passeio, quase no relvado da Alameda. Mas isto não parece ter admirado ninguém. Para mim, continua a ser motivo de espanto.


3. Em 2002, fui gravar um programa de televisão ao nordeste brasileiro, num resort da Praia das Fontes, a sul de Fortaleza, propiedade de um vizinho meu, aqui na Ericeira. Como é óbvio, fui com todas as despesas pagas pela produção. Mas, na semana que lá estive, não tive a ocasião de comprar sequer um maço de cigarros. Daí o meu espanto, ao voltar a Lisboa, por ter a mesma nota de 20 neuros que já lá estava à partida. Mas não foi a única viagem que fiz sem gastar um cêntimo. Aliás, acho que é a melhor forma de viajar.

4. Não proibi, claro. Mas sugeri que certo deputado, muito presente nos tempos de antena de campanha eleitoral, deixasse de ser presença obrigatória. Eu gosto muito dele: é uma pessoa simpatiquíssima. Mas a verdade insofismável é que ele tinha uma péssima relação com a câmara: ficava tremendamente tenso, imóvel, e o suor escorria-lhe na testa, criando reflexos tremendos. Além de que fazia umas boquinhas a falar que distraíam qualquer espectador, perdendo-se assim o conteúdo do discurso: o pessoal ficava a comentar os trejeitos e os gafanhotos que lhe saltavam da boca, em vez de ouvir a mensagem. A sugestão foi bem aceite e deixei de o usar nos tempos de antena. Espero que ele não fique muito chateado comigo, se vier a ler isto.

5. Não vou contar os casos todos, seria muito chato. Mas é verdade que recebi 3 vezes voz de prisão, só estive uma trancafiado por umas horas, e fui seis vezes a tribunal, sempre por desobediência às regras ou à bófia. Fui sempre absolvido. Se bem que, da última vez, o delegado do ministério público recorreu da minha absolvição para a Relação. O espírito de porco tinha qualquer mala-pata e escreveu mais de 40 páginas de quesitos por causa de uma miserável (pseudo)infracção ao código da estrada. Haja paciência! O caso ficou mais complicado, e o meu advogado teve de trabalhar. Depois pediu-me para não repetir a brincadeira, e é verdade que não tornou a acontecer. Já lá vão uns anos.
Isto sem falar das detenções no Governo Civil, e outra na antiga esquadra do Matadouro, ali às Picoas, no tempo do liceu. Mas isso eram outras guerras.

6. Entrei, para jantar com uns amigos brasileiros, no Aleixo, no Porto. Foi no verão passado. Só havia duas mesas ocupadas, e numa delas estava o Mário Soares a jantar com um senhor de idade que sei quem é mas não me consigo lembrar do nome. Eu tinha estado, semanas antes, na Fundação, em conversa com ele por causa de uma série documental para a RTP. O homem tem uma excelente vista e melhor memória. Cumprimentou-me de longe. Quando saiu, passou pela nossa mesa e veio de mão estendida. Convencido de que ele se lembrava da minha cara, mas não saberia de onde, alinhavei uma apresentação patética. Mas ele sabia muito bem. Adorei a cara de espanto dos meus amigos: olha a importância!

7. Fui estudar para a Bruxelas depois de ter feito o BAC, em 1968. O primeiro trabalho que os amiguinhos me arranjaram foi na copa do restaurante universitário, na ULB, a descarregar os restos das refeições dos tabuleiros usados. Ó trabalho de merda! Bota malcheiroso nisso. Não aguentei muito tempo. Depois, fui vigiar a loja da Associação de estudantes, para dissuadir os roubos. Também não tinha nada a ver comigo. Finalmente, encontrei no painel das mensagens uma proposta que me agradou: colorir banda desenhada. Lá fui integrar a equipe de Albert Weinberg, criador de Dan Cooper, o piloto de jactos franco-canadiano. Parecia uma equipe de cinema: o velho (ainda é vivo) criava a história e corrigia as feições das personagens principais; havia um desenhador para as personagens segundárias, outro para os veículos (carros, aviões, etc.), outro para as paisagens e cenários em geral, e eu para botar cor naquilo tudo. Sem esquecer o gajo dos "phylactères", que são as bolhas dos diálogos. Era trabalho escravo. Havia que produzir duas, ou mais, páginas de BD por semana, a serem publicadas na revista belga do Tintin (a original), e nunca havia mais do que uma de avanço. Era um sufoco. E estupidamente mal pago. Mas gostei da experiência, apesar das incompreensões culturais. Muitas tinham a ver com interpretações diferentes das mesmas coisas: a(s) cor(es) do mar e do céu não são as mesmas para um português ou para um belga. Também não interpretamos os ambientes da mesma forma.

Tive a colecção toda do Tintin belga em que trabalhei. Mas ficou lá numa das minhas vidas passadas. Os albuns do Dan Cooper já não estão à venda. Alguns só no Ebay. Mas os novos donos publicaram uma edição integral em vários volumes. Folheei-os na FNAC á procura da "minha obra", e cheguei à conclusão que só "produzi" uma história completa, apesar de ter apanhado o fim da anterior e o princípio da seguinte. São elas, pela ordem: Le ciel de Norvège, terminada no número 44 (Outubro) de 1968, Les pilotes perdus, entre Fevereiro e Junho de 1969, e Appollo appelle Soyouz, de Julho ou Agosto de 1969 a Janeiro de 1970. Posso ter colorido uma das capas (# 10 - Março, ou # 46 - Novembro) da revista Tintin belga de 1969. Ou até as duas.

8. Não naufraguei, não senhor. Mas foi por uma unha negra. Apanhei um dos maiores cagaços da minha vida. Ía com a minha companheira num mar de senhoras, a descer o Sado a grande velocidade, em direcção ao Portinho da Arrábida. Já na barra, mesmo em frente do Outão, entrámos num corredor de vento (por isso se chama vento encanado) que começa a levantar ondas cada vez maiores. A certa altura tive de cortar o gaz e ir pianinho. O barco subia as ondas, cada vez mais cavadas, cavitava lá em cima, na crista, e depois caía, com um barulho tremendo, lá no fundo. Parecia que se ia partir todo. Era um casco de 17 pés e cabia inteirinho na onda. A Laura gritava, de punhos brancos como a cal de tanto se agarrar à amurada. Parecia um filme de terror. Eu, por simpatia e/ou cagaço, berrava também, com as mãos fincadas no volante. Não podia correr o risco da coluna do motor virar, porque me arriscava a atravessar o barco, e aí é que eram elas. Tinha de continuar de proa para as ondas.
Isto durou "séculos". Ali bem perto, do lado dos cabeços de Troia, vários botes pescavam calmamante, fora daquela ondulação. Ao chegar à Figueirinha, consegui virar ligeiramente até ficar dentro da zona de protecção do esporão rochoso. Aí, sem sequer parar o barco, virei 180º e voltei a Setúbal, a favor da corrente. Ninguém me apanhava mais no mar, naquele dia.

9. Em 1973, fui para Cannes com um colega da escola de cinema, em Bruxelas, que já era crítico encartado. Tinha preparado minimamente a viagem, pedindo a um amigo, que dirigia um semanariozito em Portugal, um cartão (falso) de colaborador e uma carta de apresentação. Como bons estudantes tesos, viajámos no comboio da noite que chega a Nice de madrugada. Chegado a Cannes, apresentei-me aos serviços de acreditação dirigidos pela Mme Fargette, que era um autêntico dragão. Claro que não "encontraram" a minha acreditação, já que ela não tinha sido solicitada. E mesmo que tivesse sido, não ma dariam. Havia 1500 jornalistas/repórteres acreditados. E mais uns mil a pedir para o serem. Enquanto esperei que me "resolvessem" a situação, vi pessoal de publicações famosas ser recambiado sem apelo nem agravo. Não levantei ondas, como fazem normalmente os franceses. Fiquei mudo e quedo. Foram-me dando convites para ir assistir às sessões oficiais, ou para ir comer a diversas recepções e cocktails. No fim do dia, desistiram de procurar. Como eu era o mais novo e foram com a minha cara, "assumiram" o erro e deram-me uma acreditação.
Claro que trabalhei, publiquei e mandei-lhes os recortes. No ano seguinte, já fazia parte das listas. Desde esse dia, vou às coisas, porque o máximo que pode acontecer é levar uma nega. E essa está sempre garantida.

Todos temos na vida momentos especiais, referências engraçadas e memórias várias que integram o imaginário colectivo. Uma delas é um comentário, de tom meio machista, que ficou na "cultura": "terá casado aos 15?", referindo-se a uma jovem mãe, normalmente como o milho. Era uma deixa de um anúncio de já não sei que sabonete (Palmolive?) que deveria ser gravado por já não sei que locutor (obrigado, Dr.Alzheimer) que faltou á sessão de gravação. O único macho ali disponível para dar a voz, era eu. E lá fiquei eu, para aquela curta posteridade, a dizer: "Três filhos? Terá casado aos 15?", que soou na RTP durante "séculos", e depois, durante muito tempo, na vida real. O machinho, no filme, não era eu.

5 comentários:

Alex disse...

FINALMETE!
Oh homem, eu nem tenho andado a dormir bem... na dúvida, na dúvida
Estou muito mais alíviada por saber A Verdade, um tanto surpresa por não ter andado assim tão longe quanto julgava e, sobretudo, muito contente: Afinal sempre é verdade que pintaste os Tin-tins
Beijinhos para ti

Cristina Rodo disse...

Alex... porcalhona... lol

Magda disse...

Pode não ser tudo verdade. Mas para se construir uma mentira também se tem de navegar. Boa viagem!

Vera Santana disse...

Aquela voz do anúncio "terá casado aos 15?" era a tua? Que giro saber isto duas décadas passadas.

Muito brincaram comigo, debitando o anúncio... Não porque eu me tivesse casado mas por ter, então, um ar jovem e uma filha jovem.

Vera

Alex disse...

Cá para mim o calceteiro reformou-se...