segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A vida dos outros

Não me tinha passado pela cabeça aqui tratar de filmes ou de cinema, em geral. Tenho, dos filmes, uma visão muitas vezes rígida e tecnicista, o que incomoda os meus amigos. Seria, para mim, muito difícil escrever crítica, já que ando sempre à procura do filme ideal, e, na maior parte das vezes, não o encontro. A fasquia está sempre colocada muito em cima.
E um filme pode ser "ideal" de muitas maneiras: ou porque a história está bem contada, ou porque o espectáculo montado me faz esquecer tudo o resto. Ou os dois, em conjunto.
Parto sempre para os filmes em estado de suspensão de credulidade, como é de regra: estou sempre pronto a aceitar o novo mundo que o realizador me apresenta, e, se ele me quiser convencer de que os animais falam, eu acredito. E vou acreditando enquanto não houver uma solução de facilidade, um truque manhoso, ou uma cedência a qualquer moda imposta pela indústria ou pelo comércio. A partir daí, a credulidade acabou. Vou contando os erros, estou mesmo à espera deles. E já não é de um espectáculo que se trata, mas de uma competição: sou, ou não sou mais esperto do que ele? Eu acho que esta, também é uma forma de gostar de cinema: a aprender com os erros dos outros.
O que me levou aqui a falar de cinema, foi ter começado a ver um filme chamado Nine. Digo começado, porque após os primeiros minutos parei de ver. Na minha distracção, não sabia que tinha sido feito um filme inspirado no musical da Broadway, por sua vez inspirado no 8 ½ de Fellini. Tudo o que sabia é que ia ver um filme com argumento de Anthony Minghella (O Paciente Inglês, Cold Mountain, Breaking and Entering), um realizador muito prometedor que morreu cedo demais.
Apesar de ser a cores, o filme abre com uma cena a preto e branco, e logo ali aparece 8 ½, não há nada escondido: Daniel Day-Lewis a fazer de Marcello Mastroianni, que faz de Fellini. Um actor inglês a falar a sua língua materna, com o sotaque do actor italiano, que fala inglês. A composição da imagem não deixa dúvidas, e o guarda-roupa é passado a papel químico. Nem poderia deixar de ser, já que 8 ½ ganhou o óscar de melhor guarda-roupa: um filme que conta a história de outro filme, teria de respeitar esse contexto historico.
8 ½ é o perfeito filme de ficção: ao retratar um mundo que existe na realidade, ele escapa dessa realidade e entra, por portas e travessas, naquela fuga de Guido atravé de Roma, a Roma das noites frenéticas e madrugadas vibrantes, numa nova realidade composta pelos sonhos e fantasmas de Guido. Os sonhos nunca chocam de frente com a realidade, mas são diferentes. E a fuga tem a ver com aquilo que a realidade espera de Guido, mas que ele duvida que lhe consiga dar. É, portanto, um filme eminentemente autobiográfico, em que Fellini se encena a si próprio no corpo e imagem de Marcello Mastroianni. E autobiográfico como um currículo, onde se enaltecem umas coisas, e se omitem outras: já estamos no domínio da ficção. É a construção de uma identidade que não existe na realidade. Somos aquilo que fazemos. E há quem diga que somos tão bons quanto a última coisa que fizemos. Mas podemos sempre dar a ver, aos outros, uma imagem diferente daquela que o espelho nos devolve.
E, sem desprimor para o filme Nine, que só verei depois (não faço a mínima ideia se presta ou não), eu parei, confuso, a pensar que direito (sem contexto jurídico) é que um qualquer realizador, escritor, compositor, usa as identidades, sonhos e fantasmas de outro qualquer? É que não se trata de uma variação sobre um tema de Fellini. Uma variação pega num tema, numa frase, numa melodia, e desenvolve-a, se o "variador" achar que tem alguma coisa a acrescentar àquela fonte de inspiração. Isto é velho como o mundo. Aqui, trata-se de uma coisa completamente diferente. 8 ½ poderia ser um monumento de pedra numa sala de museu. Podemos andar à volta dele, observar pormenores de mais perto, usar lupas, se for preciso, ver o que não tinhamos visto numa visita anterior, mas não lhe podemos acrescentar nada. Podemos pintá-lo, claro. Iluminá-lo de outra forma. Mas não lhe podemos colar um braço extra. Até podemos cortar qualquer coisa para o fazer caber em outros espaços. Mas isso já é uma amputação. Não é possível acrecentar, ou alterar seja o que for à visão que outro tem de si próprio, ou da sua própria vida. Os psicanalistas fazem-no, é verdade. Mas não cobram bilhetes.
Nine não pode ser uma revisitação de 8 ½, pois 8 ½ não é um local, nem uma época que possam ser frequentados. Então, é o quê? O que é que 8 ½ tem de imperfeito para que se sinta, hoje, vontade de o aperfeiçoar? E fica a pergunta da maior perplexidade: se 8 ½ é um produto vendável, porque não exibir o original, de vez em quando?

2 comentários:

magda disse...

Outro escrito! Já não era sem tempo! Já falaste uma vez de cinema,e não caía o Carmo e a Trindade se falasses mais vezes. Falar do que sabes, pode não te acrescentar muito a ti, mas é bom para os outros.
Quase faltou falares em heresia! Eu pela minha parte fiquei com vontade de ver (ou rever) Fellini 8 1/2. Digo ver ou rever, porque com o andar dos anos "o nosso olhar" cresce e nunca vemos o mesmo. Obrigada pela dica.

ZPedro disse...

Não acho que estivesse sequer perto de uma sensação de heresia: era só perplexidade. E mesmo depois de ter visto Nine, sem ter desgostado, como produto fílmico, continuo sem entender a motivação.
Quanto a escrever sobre filmes, acho sempre que tenho muito pouco a dizer. Quanto a falar de cinema, acho que tens razão: falo de vez em quando, mesmo quando não é explícito.