sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Os manuais da cegueira

É sabido que qualquer literatura ajuda a suprir uma necessidade num dado momento, ou num certo campo. E por literatura entendo tudo o que se elabore como texto a ser ouvido, lido, em letra de forma ou como sequência de imagens. Conselhos, também são literatura. Estamos, quase sempre, em busca de respostas, de conhecimento mais especializado divulgado por quem, por experiência própria, por capacidade em lidar com situações extremas, nos pode fazer participar em experiências que não poderemos viver. A vida é muito curta para podermos vivê-las todas. A nossa capacidade de associação pode, assim, valer-se de um romance, de um poema, de uma canção, de um filme, de uma conversa com um amigo ou com um profissional, para obter conhecimentos que de outro modo ficariam ignorados.

É sabido, também, que andamos sempre em busca de protecção. E a verdade universal parece proteger-nos contra a insegurança, a perplexidade, a agressividade da sociedade liberal, já que milhões de pessoas juntas não podem estar enganadas. Só que esta verdade consensual e colectiva não é, forçosamente, a verdade de que necessitamos. É a verdade do rebanho. E o rebanho oferece protecção. Daí, o êxito das religiões.

Mas, hoje, vivemos numa época de enfraquecimento das religiões. Depois de termos sido condicionados massivamente a procurar a felicidade obedecendo a preceitos religiosos, hoje estamos perante a oferta da libertação dos padrões como forma de lá chegar. O enfraquecimento deve-se, muitas vezes, ao facto dos mandamentos morais ameaçarem, em vez de consolarem, condenarem, em vez de entenderem, elaborarem uma consciência de culpabilização em que se moldam grande parte dos princípios que deveriam ser representativos da liberdade. É este paradoxo que a chamada "indústria" de auto-ajuda explora.
Escrevi "indústria" porque acho que é de "consumo" que estou a tratar: existe uma necessidade, a do indivíduo lançado às feras, perplexo perante a complexidade dos problemas que o afectam, sem resposta para as contrariedades, e, em vez de o "ensinarem a pescar", dão-lhe (ou vendem-lhe, mais precisamente) o peixe. Dá-se-lhe aquilo que ele pode comprar.

É assim que funciona uma sociedade ultra-liberal: a publicidade diz-nos exactamente do que é que precisamos, a indústria coloca-o no mercado, o indivíduo consome, gera-se lucro, e toda a gente fica satisfeita porque o mercado funciona. Não se coloca no mercado o que as pessoas não querem comprar; não se coloca no mercado o que é complexo, difícil de entender: para isso teria de se dar conhecimento e informação às pessoas; não se coloca no mercado o que é saudável, teria custos incomportáveis. Coloca-se no mercado o que é vendável. Ensinar as pessoas a pescar não dá lucro: quem pesca, já não compra peixe.

Mas as pessoas não são todas abúlicas. E, por isso, não se consegue vender aquilo em que as pessoas, muito simplesmente, não acreditem. Já viram um vigarista antipático a convencer-vos de uma verdade a que nos oponhamos? Claro que não. Vigarista que se preze tem de ser simpático. E se não conseguir convencer-nos, dá-nos a volta com as verdades que queremos ouvir. É assim na televisão comercial, é assim na publicidade, é assim na literatura dita de auto-ajuda, na comunicação social em geral. Porque se dirije ao maior número possível de "clientes", tem de estar ao nível cultural e emocional da maior parte da massa consumidora: dos 8 aos 88 anos. Entenderam, claro. Não quero dizer que se dirije a um intelecto de oito anos, com o pretexto gritante de que não estamos todos ao mesmo nível de evolução, nivelando por baixo, porque estaria a agredir grande parte dos meus leitores. Concepções contrárias à da maioria são geralmente vistas como uma agressão. E quem se sente agredido, muda-se. Para outro canal, para outro blog, não compra o meu produto, fecha-se nas suas defesas, dispara rajadas de Kalashnikov. Quando adoptamos posturas críticas que contrariam um sentimento comum, corremos o risco de sermos vistos como arrogantes, pedantes, invejosos, desmancha-prazeres... "do contra", mensageiros da desgraça, bruxos!
Hoje, no âmbito do que "queremos ler, ouvir", assiste-se à proliferação de "conselhos" que nos permitem sermos condescendentes connosco, marimbando nas recriminações, ao permitirem que novas formas de ver as coisas tomem o lugar de valores e princípios inculcados por conceitos culturais, familiares ou religiosos, sem a mínima preocupação com os reflexos que isso possa ter na interacção com os outros, ao sabor da filosofia "que se lixem os outros" que estiver na moda no momento: apologia do “umbigocentrismo”, do desprezo total pelos limites impostos pela consciência, e repetições verbais e mentais de falácias impraticáveis, pela mera busca da sensação de bem estar.

Theodor Adorno & Max Horkheimer chamaram a atenção para o fenómeno, no contexto do qual se fabrica, segundo eles, um estilo de conduta para os indivíduos que, submetidos à disciplina do racionalismo moderno, necessitam que se lhes diga como cuidar do seu corpo, fazer amigos e valorizar a sua personalidade. Para os autores, o capitalismo enseja o surgimento de movimentos de massa que condicionam as rotinas cotidianas, penetrando no modo como os indivíduos planeiam os seus compromissos, as pessoas sorriem para as outras, escolhem as palavras da conversa do dia a dia e estruturam a sua vida interior, numa tentativa de fazer de si mesmas "um aparelho eficiente e que corresponda, mesmo nos mais profundos impulsos instintivos, ao modelo apresentado pela indústria cultural".

A modernidade desintegrou as representações colectivas e simbolismos comuns que recomendavam a salvação do eu na fusão dos propósitos pessoais com os propósitos da comunidade. O resultado desse processo foi a criação de uma sociedade de indivíduos livres, mas, também, de um conjunto de problemas pessoais que tornou profundamente problemática essa liberdade.
Esta prática começou a vulgarizar-se através dos meios de comunicação, ao difundirem um saber de cunho paracientífico, caracterizado nos catecismos sobre como conduzir a vida, nas matérias sobre o potencial humano, nos testes de auto-conhecimento e nos desenhos de perfis psicológicos. As respostas para os problemas de identidade, os recursos para descobrir e explorar os segredos da alma, do corpo e do sexo, as fórmulas para ter sucesso na vida e relacionar-se com as pessoas foram-se tornando mercadoria de consumo de massa, conforme demonstra bastante bem o caso dos livros de auto-ajuda e de banalização primária de conceitos. E há para todos os gostos: desenvolver capacidades objectivas, conseguir sucesso nos negócios, comunicar com as pessoas, conservar o marido, obter auto-estima, saber envelhecer, vencer a depressão, viver em plenitude... E têm a ver, essencialmente, com as dificuldades, surgidas com a abstracção social ocorrida na modernidade, com que o homem comum do nosso tempo convive consigo próprio. Mas também com a explosão das referências morais, explorando a personalidade, superando a descrença em nós mesmos, e levar-nos a constituirmos-nos legitimamente como sujeitos de uma conduta na sociedade.

A base é sempre a mesma, como nos métodos religiosos do passado: a salvação é um produto absolutamente individual, que se alcança a partir da própria força do indivíduo. Porém, é necessária uma abordagem nova para o sentimento moderno de que, exactamente por vivermos numa sociedade igualitária, a ideia de que a nossa angústia íntima é desprovida de sentido, é intolerável, e tem a ver com a ansiedade gerada pela ideia de que somos todos iguais, e, portanto, cada um de nós é o único responsável pela respectiva infelicidade. Negando o mundo, negando as pressões sociais, as pressões económicas, as desigualdades gritantes...

Durkheim escreveu que os modernos resolveram correr o risco que advém da promoção de um método individual, subjectivo, que leva a moral a ser apenas o sentimento que cada um de nós tenha. A multiplicação desordenada da experiência e a restrição dos controles morais, provocam em muitos uma desorientação individual diante do mundo, e uma dificuldade em ordenar a vida por conta própria, e desencadeia uma série de questionamentos a que não poderemos responder sem uma ou outra forma de ajuda: "as sociedades que exigem do indivíduo um grau de especialização mais ou menos alto, determinam, pela sua própria natureza, que ele negligencie, ou deixe sem uso, uma grande quantidade de possibilidades existenciais, [conheça] vidas que ele não viverá, papéis que não exercerá, experiências que não chegará a viver e ocasiões que perderá". A isto, os manuais da cegueira respondem: "O indivíduo não deve preocupar-se em mudar a realidade, mas sim a experiência que tem dela ... porque a experiência pode ser manipulada interiormente e, portanto, autocontrolada".

O que existe nos escaparates pode ser, por si só, considerado um sintoma: ajuda pela hipnose, pela auto-hipnose, pela auto-análise e pela meditação; ajuda através da arte curativa dos chineses; auto-ajuda para vencer a ansiedade, a angústia, a dependência de drogas, a violência urbana, o stress e todas as formas de doenças sociais; auto-ajuda pelo tarot; todas as formas de psicoterapia centradas no corpo; todas as técnicas de auto-sobrevivência; auto-ajuda pela cura quântica ou através do Campo de Energia Humana, etc. Isto é o gosto comum?

Li, não sei quando, nem onde, uma entrevista do António Lobo Antunes, em que ele dizia que o papel, a função do escritor, é de fazer ver.

Escritores, precisam-se.


* Leiam Gilles Lipovetsky, "A ERA DO VAZIO: Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo", "O CREPÚSCULO DO DEVER", "A FELICIDADE PARADOXAL". Tudo à venda na FNAC.

* Leiam "4 ARGUMENTOS PARA ACABAR COM A TELEVISÃO", de Jerry Mander. Ainda há pouco tempo o comprei, pela 4ª vez, na Ler Devagar.

* Frequentem: "Literatura de auto-ajuda e modos de subjetivação na cultura de massa contemporânea", de Francisco Rüdiger, em http://www.ufpe.br/eso/revista6/rudiger.html
e
http://inquilinosdoalem.blogspot.com/2007/10/literatura-de-auto-ajuda.html

* Abram os olhos.

* Sejam felizes.

2 comentários:

Vera Santana disse...

PoiZé Pedro,

Texto interessante. Mudar por dentro é importantíssimo mas mudar (ou tentar mudar) o que está mal por fora - as estruturas sociais - continua a ser uma prioridade, esquecida pelas escolas culturalistas e por práticas sociais individualistas.

A propósito e indo aos conceitos de E. Durkheim, pode dizer-se que "a representação colectiva actual é o individualismo".

Uma sugestão: o teu blog podia correr no facebook para que mais pessoas o lessem...

Inté,

Vera

Vera Santana disse...

Passei só para desejar um bom 2010!
Beijos,
Vera