terça-feira, 7 de setembro de 2010

Foi por bem

No fim de uma novela, o mínimo que eu posso esperar, é que se esclareçam todos os mistérios que me foram servidos ao longo de uns milhares de episódios diários. Chama-se a isso, o "desatar dos nós". E tem de acontecer num romance, num filme, numa anedota, numa notícia. Se não acontecer, o espectador/leitor vai dar por muito mal empregue a disponibilidade e a atenção dispensadas, o tempo gasto, e a credulidade suspensa, com o objectivo de ser surpreendido, entretido, e de aprender alguma coisa. Na vida real, também. Eu quero saber porque é que o mau é mau, porque é que fez o que fez às vítimas, que proveitos daí tirou, como é que foi descoberto (investigação) e desmascarado, e como é que é castigado. 

Disse, e repito, que só aqui trato de espectáculo. Seja ele qual for. E seja qual for, também, o protagonista que se exponha. Neste caso, é o da justiça (onde incluo tribunais, e seus agentes, assim como polícias e legisladores) já que ela se expôs ao ridículo de uma péssima novela, enredo (plot) ruim, narrativa incompetente e com final altamente duvidoso. E ocupo-me disto porque acho que a justiça é um protagonista fundamental da democracia. E, como à mulher de César, não lhe basta parecer séria. 

Neste enredo (plot), em que o protagonista é o próprio autor e narrador (com uma grande ajuda, é certo, de toda a comunicação social, mais do diz que diz, e os recados de outras personagens da estória - assim escrito para não se confundir com qualquer memória colectiva), as causas têm de produzir consequências, e a moral da comunidade tem de sair reforçada. Ou abalada por transformações revolucionárias. Estas são as regras. É isto que o público espera e precisa. 

O espectáculo da justiça não deveria confundir-se com um espectáculo de circo, a César o que é de César (outra vez?), portanto há coisas absolutamente proibidas, como prestidigitação, malabarismo, contorcionismo (para o que é fundamental uma coluna vertebral muito flexível), passes de mágica e funambulismo. Mas também a "mão de Deus" (já que isto também não é futebol), mais conhecida como "deus ex-machina". Mais os acasos e as coincidências. 

Muito menos, as crenças. 

O narrador até pode reter alguma informação para criar suspense. Mas no fim, vejam-se os romances do Poe, ou os filmes do Hitchcok, tudo tem de ser explicado. 

Ou fomos enganados. 

Saber que os acusados foram condenados até pode servir de catarse às vítimas. Dou isso de barato. Mas não passa de um enredo paralelo (sub-plot) e marginal. A isso, eu chamo espírito de vingança, e ficou bem explícito nos comentários de Catalina Pestana, à saída da leitura da "sentença": "Para nós (ela e mais quem? A instituição Casa Pia? As vítimas?), o caso termina hoje e aqui". Como quem diz (assim o interpreto eu), "já temos o que queríamos". 

Isto não tem nada a ver com justiça. 

A justiça (com ou sem maiúscula) só se justifica nos resultados que produz em prol da comunidade. O seu espectáculo tem de cumprir certos protocolos, e não se compadece com finais apressados e incompletos, só para cumprir um calendário: o dia da leitura da "sentença" coincidiu com o aniversário da primeira queixa relativa ao caso Casa Pia (em 2001) e que o desencadeou. Este caso não se pode cingir a uma efeméride. Compreendia que assim fosse se a justiça estivese de conluio com a astrologia, por exemplo. Mas seria um expediente narrativo manhoso: uma maquilhagem para desviar atenções.

Do que sabemos, até agora, a "satisfação" das vítimas foi o único objectivo atingido, após milhões de euros dos contribuintes (mal) gastos numa montanha que pariu, afinal, um rato. Dois anos para chegar a conclusões daquelas? Pior que a construção de uma auto-estrada, ou de um Centro Cultural de Belém. Os autores só podem ser profundamente preguiçosos e incompetentes, já que o suspense não produziu qualquer surpresa. E não me venham com a treta da "pobreza" da administração da justiça (vulgo tribunais): os emolumentos que pagamos porque sim, e por dá cá aquela palha, devem dar para muitas fotocopiadoras, e para pagar horas extraordinárias (se forem necessárias) a muitos "operadores e técnicos de reprodução" (de documentos, claro). 

E não se pode remeter as conclusões de uma história destas para as sequelas (Casa Pia 2, Casa Pia 3, e seguintes). Ou pode? Também pensei nessa possibilidade (é que não seria caso virgem: a quantidade de coisas - compromissos comerciais, promessas eleitorais - adiadas para próximas núpcias e legislaturas, é o pão nossa da nossa desdita). A ler o desfecho anunciado à luz das técnicas da narrativa ficcional, eu teria tendência a pensar que este não é o final imaginado, aqui só termina o segundo acto, e que o que foi feito, foi feito de propósito (mal) para ser (reviravolta dramática) corrigido na instância seguinte: os desembargadores da Relação vão, de qualquer maneira, anular esta decisão da 8ª Vara (por incompetente). Mas a justiça já terá "sido servida" às vítimas (3 de setembro de 2010), e justiça "será servida" (de qualquer forma) aos arguidos (formalmente mal) condenados, na Relação, num futuro mais ou menos próximo. Para mais, e não para menos, como já nos habituaram. 

Apostava singelo contra dobrado. 

E não faltarão umas almas caridosas a justificar: "Foi por bem", como aquele rei (não me apetece ir googlar para saber qual) apanhado com a boca na botija, no engate descarado de uma aia da raínha (vide Sala das Pegas, do Palácio da Vila, em Sintra). 

Também apostava que todos os intervenientes estão conscientes disto. Mas o espectáculo exige que se agitem, que se façam ouvir, que o conflito tente chegar a um clímax. É o momento próprio, no fecho do segundo acto, transição para o terceiro. E quem é que fica bem em todos estes cenários? A justiça, claro! Mas não porque deu um espectáculo credível, de instituição confiável, para todos nós. E sim porque construiu, à nossa custa, uma imagem que só a beneficia a ela, onde mostra que comete erros, mas também os corrige. Sem benefício colectivo. Estilo burocracia, que se sustenta a si própria. 

E o pior é que muitos espectadores (os fanáticos do circo romano e indefectíveis dos autos da fé públicos) nem se dão conta do quanto foram, e continuam a ser, intoxicados e hipnotizados para engolirem um desfecho destes. Dos outros, se fosse num teatro, o mais certo era levarem (os autores e actores) com apupos e mais armas de arremesso que aqueles apanhassem à mão. E não me refiro só aos protagonistas da justiça. Incluo neste elenco, toda a comunicação social, e mais intérpretes do poder instituído.

Já não bastam os governos, as empresas públicas, o comércio em geral, o Tesouro, as televisões, a tratarem-nos como menores? De idade e mentalidade? Não esqueçamos que os tribunais, palco da justiça, são órgãos de soberania. Mas que não os elegemos.

Pobre democracia! Triste espectáculo!

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