segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Do conhecimento inútil I

A invectiva: ó fulano (não vou começar a identificar personagens, sobretudo se estiverem no poder, forem inspectores do fisco, psiquiatras ou mecânicos de automóveis, a diferentes níveis de perigosidade e de sentido de humor) ó fulano, dizia eu, você, que tem o maior conhecimento inútil que eu conheça, diga-me lá por que é que..., será que é para levar a sério? Será para ofender? Ou é simplesmente inveja?

Eu acho que o conhecimento inútil é um ramo abastardado da ciência, da memória, da cusquice, ou de todos eles em conjunto. E é provável que se desenvolva por geração espontânea, como as nuvens de condensação vertical e muito localizadas, provenientes do arrefecimento do ar húmido que se eleva na atmosfera. Aparecem muito depressa, muitas vezes no litoral, sobre uma baía, mas raramente precipitam.
Quando não se sabia por que chovia, faiscava ou trovejava, o pessoal temia que o céu lhe caísse na cabeça, e refugiou-se nas cavernas. Ao primeiro tremor de terra, o tecto (da caverna) caiu-lhes em cima e eles começaram a perceber: é conhecimento de experiência feito. Sentido na pele. Empírico.

Para que serve distinguir umas nuvens das outras? Acho que é bom de ver: para saber que roupa vestir quando se sai de casa. Se forem uns cumulusnimbos, altos, multiformes, com zonas cinzento escuro, o mais provável é vir trovoada e bátegas de água. Se forem uns cirrozitos, só provocam sombra, chateiam que estiver na praia, e fica por aí.
A direcção do vento também traz informações fundamentais: se estiver de norte e as nuvens estiverem a sul, podemos sair de corpinho bem feito, que quem leva com a chuva é o pessoal de Sintra, e arredores. Como sempre, aliás. Já a orientação de sul, dizem as estatísticas e a sabedoria milenar dos pescadores que é chuva garantida. Quem viver no litoral, basta olhar para o estacionamento dos barcos de pesca. Se estiverem todos em terra, é porque vem borrasca. Ou porque não vai haver desembarque de produtos ilícitos ao largo (para quem serve, é bom de saber que pode haver carência e os preços de mercado vão disparar).
Quando os carros de patrulha da GNR (ou da PSP) estão todos no estacionamento da esquadra, também pode ser sinal de chuva. Ou porque a vila está cheia de turistas, que podem fazer o que quiserem, portanto não vale a pena por o nariz de fora só para arranjar sarilhos.

O conhecimento inútil não conhece limites. Tive um cunhado (apesar de, ao que me disseram, os cunhados serem para toda a vida, ao contrário das mulhers/esposas) que conhecia todas as rotas aéreas e respectivos horários, em todos os aeroportos europeus: nem que fosse a Baku, passando por Esmirna e Tunis, para chegar de Frankfurt a Lisboa, ele não ficava mais de uma hora em trânsito: é preciso é andar. Nem que seja para trás. Eu também já fui do Rio para Frankfurt, em voo nocturno, para depois apanhar outro voo de 3 ou 4 horas para Lisboa, só para abichar um upgrade para executiva. Daqui se depreende que o conhecimento inútil só o é para os outros, porque a nós, serve-nos à perfeição. Há quem conheça a distribuição dos lugares num avião pelo modelo do dito: importante para quem mede mais de um metro e oitenta.
O conhecimento inútil é bom para resistirmos à chicoespertice dos outros. Mas é mau no que toca a gestão de conflitos: o chicoesperto não gosta que se lhe destape a careca e pode reagir de forma intempestiva. Lá se vão os brandos costumes. Daqui se infere que o conhecimento inútil não é universal, nem incita à diplomacia. É bom ter noções de artes marciais. Quem levanta cabelo tem de saber que as posições são para levar até ao fim, seja com um(a) abusador(a), um polícia ou um comerciante. E é bom conhecer os delitos que não acarretam prisão preventiva, para poder resistir legitimamente ao abuso da autoridade: uma vez trancafiados, abusivamente, numa cela do governo civil, mais vale relaxar e esperar pela soltura no dia seguinte. Quem nunca leu a constituição da república portuguesa não sabe que o direito de resistência à autoridade aí está consignado. É uma questão de boa prática democrática.

Mas, perguntarão alguns, o conhecimento inútil é compatível com a chicospertice? Raramente o é, já que se trata de uma arma de defesa e não de arremesso. Esta noção é muito importante na medida em que, muitas vezes, o conhecimento inútil é confundido com cagança, pesporrência, ou até, teimosia.

As mesmas causas produzindo, muitas vezes, os mesmos efeitos, uma boa base de dados permite elaborar e especular com algum fundamento, e reduz fortemente a ansiedade. Não confundir, como acontece muitas vezes, com adivinhação. Se bem que eu ache que as boas pitonisas e outros cartomantes têm, obrigatoriamente, de ter algum jeitinho destes para juntar factos e malabarar* com eles. Psicanalistas, também. É tudo uma questão de narrativa. Quem quiser contar uma grande mentira, tem de conhecer muitos factos. Ou a mentira não terá bases suficientes para ser credível. Ora, mentira que não seja credível, não é uma mentira, em bom rigor lexical, mas sim uma tentativa patética de enganar alguém.

Hei-de voltar ao assunto. Interpretem isto como promessa, ou ameaça, à escolha...


* procurei a palavra em vários dicionários, e, qual não é o meu espanto, não encontrei. Mas não é óbvio? Se um prestidigitador prestidigita, porque é que um malabarista não malabara? Em francês, está na cara: un jongleur, jongle! Se bem que a palavra portuguesa e a francesa correspondam exactamente à mesma coisa, a francesa é muito menos ofensiva. Dependendo de quem se trate, pode ser, até, apologética.

1 comentário:

Magda disse...

Nas palavras chave devias pôr também sedutor ou sedução. Porque esse "conhecimento inútil" dá pano para mangas para bem conversar, ser um bom contador de histórias e poder fascinar quem ouve.Não é tão inutil assim...