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sexta-feira, 21 de maio de 2010

Arte e prestidigitação

Já aqui disse que não trato de política. Mas, o espectáculo dessa mesma política merece toda a minha atenção.

O espectáculo é uma noção vasta, que abarca actuações interpretativas, acções complicadas, narrativas fantásticas. O espectáculo transporta-nos para novos mundos, tanto reais, como especulativos, e é essencial para nos abrir os horizontes, para nos transmitir experiências alheias que dificilmente podemos viver. O espectáculo é a expressão da criatividade, da imaginação, do virtuosismo.

Na relação com o "cliente", espectador, ouvinte, leitor, o artista tem algumas obrigações. E a mais importante, a meu ver, é o cumprimento do contrato tácito que se estabelece neste tipo de troca: um filme (anunciado como) policial, não pode (não deve) vir a revelar-se uma comédia romântica; um romance da Isabel Allende não deve (não pode) parecer uma prosa do Paul Auster; quem vai ao circo, quer ver palhaços, acrobatas, leões e tigres; quem paga para assistir a um jogo do Benfica, quer vê-lo a vencer; quem vai ouvEr uma ópera ao S.Carlos, espera, pelo menos, uma interpretação tão boa quanto as que vê no canal Mezzo; ninguém vai a um restaurante japonês com vontade de mãozinha de vitela com grão. O incumprimento destas (e de muitas outras) obrigações, provoca desilusão e descrença. E é mau para todos, artistas e "clientes": quem assiste a uma encenação patética de teatro, enquanto se lembrar não se desloca a outra; quem ler um mau romance, não se precipita para a livraria para comprar outro (romance). A confiança do "cliente" levou muitos séculos de cultura a conquistar, e perde-se em meia hora de intervenção televisiva. Por exemplo.

Outra obrigação contratual tem a ver com o anúncio claro e inequívoco do mundo para onde o artista nos pretende transportar. Esse mundo tem de ser caracterizado para que o "cliente" se presdisponha a aceitá-lo, e assim, suspender momentaneamente a (sua, dele, cliente) credulidade. Isto é uma coisa que todos os paizinhos e mãezinhas bem sabem. Quase todas as histórias, que começam com "era uma vez", se passam num mundo distante com castelos, cavaleiros e princesas, ou no tempo em que os animais falavam, ou no tempo dos dinossauros, do qual, todos sabemos, não sobrou nenhum para contar como foi. Mas também pode ser num planeta distante, onde as condições de vida humana são inviáveis, e teremos de transmitir a NOSSA informação para um corpo indígena, para aí poder sobreviver, enquanto o nosso corpo permanece, vazio de energia, em qualquer arca congeladora. E nós (clientes), estamos prontos a aceitar todas estas realidades alteradas, desde que apresentadas de forma aceitável e plausível. Suspensão momentânea da credulidade. Durante hora e meia, papamos daquilo, no escurinho do cinema (Rita Lee).

Quando não há caracterização específica do mundo que estão para nos "vender", é tácito, e óbvio, de que é do NOSSO mundo que se trata. Os códigos de leitura são claros: estamos no mundo da interpretação da realidade em que vivemos: é a representação figurativa da natureza que nos rodeia (ar para respirar, os campos são verdes e o céu é azul), existe um deve e um haver, nem sempre equilibrado, os amigos são para (nos) apoiar, e os adversários são para levar. Branco é branco (Demis Roussos), preto é preto, os bandidos roubam, os polícias prendem-nos (a eles, bandidos). É por isso que, se o mundo não for este, temos de ser avisados, preparados, elucidados. Os mundos alternativos "têm" de ser anunciados, e, em muitos casos, basta o conhecimento do nome do artista para que uma das exigências do contrato esteja cumprida: a pintura de Picasso É do Picasso, os filmes do David Lynch SÃO do David Lynch, só lá vai quem quer, e sabendo que não é com os códigos universais que pode dialogar com aquele artista: vai ter de descobrir os códigos próprios, que, pelo seu (dele) lado, o artista incluiu na obra para esse fim.

Outra regra fundamental, é evitar qualquer sensação de estranheza ao espectador, ouvinte, leitor. Quando fez Blade Runner, Riddley Scott utilizou uma técnica a que, posteriormente, se chamou "retrofitting", para caracterizar o mundo do futuro em que decorre a história de Phillip Dick: utilizou o ambiente, cor, guarda-roupa dos filmes negros dos anos 40 e 50. É um mundo "conhecido", mas não "vivido" pela maior parte dos espectadores dos anos 80. Não causa, portanto estranheza. Isto, para chegar ao ponto de que é necessária uma grande ligação à NOSSA realidade, para impingir uma OUTRA realidade. Isto, também toda a gente sabe. Não é por acaso que o povo diz "com a verdade me enganas". Eu prefiro Orson Welles, outro grande prestidigitador, quando diz que é preciso incluir muita verdade numa grande mentira.

Mas, qual fada má, melga chata, pulga maldita, eis que um erro técnico na narrativa, uma interpretação deficiente, uma caracterização pobre, o relógio no pulso de um soldado de Alexandre, a expulsão do jogador vedeta, nos acorda daquela hipnose: NÃO DÁ PARA ACREDITAR! E acabou o espectáculo: faltam 20 minutos para o fim do jogo, e a equipe já não se aguenta nas canelas, quanto mais virar um resulado de 0 - 3! Ou está toda fechada na defesa, a defender o empate. É o NÃO espectáculo!

Quero eu dizer com isto que não basta uma boa interpretação para nos fazer acreditar num espectáculo: há muitos outros parâmetros, e a definição do mundo (daquele mundo) não é dos menos importantes. Se não, vejamos: o nosso primeiro ministro presenteou-nos com uma prestação televisiva merecedora do óscar para "male leading role". Eu não tenho dúvidas sobre isso. E também não tenho dúvidas que se pretendia que fosse um espectáculo: houve um primeiro acto em que os "adversários" se estudaram, luvas de pelica, sem interrupções, só sorrisos e palmadinhas nas costas, permitindo que cada um delimitasse o seu (dele) território. Mas também houve conflito, ou o espectáculo dele: tentativas, quase sempre tímidas, mas valendo-se do conhecimento que o telespectador tem da "agressividade" entrevistadora da Judite Sousa (faz parte da meta-realidade, como o alho, e o azeite, no bacalhau), para que o artista convidado fosse obrigado a ir por outro caminho. É outra regra da ficção (eu disse ficção?): quanto mais malvado for o antagonista, mais heróica será a tarefa do protagonista. Diria que todos os obstáculos, todos os empecilhos colocados na frente do primeiro, foram inúteis: ele deu cabo de todos. Aliás, outra coisa não seria de esperar. Quem monta um espectáculo, e não o controla, só pode ser incompetente. Realizador que se preze, não mete num filme cenas com que não concorda, ou que não contribuam para o entendimento da história. Um pintor só usa as cores que o façam vibrar; usar outras, seria ceder a modismos. E os exemplos são infinitos. Ulisses pode, assim, vencer os obstáculos com modéstia e alguma humildade. E, no terceiro acto, aquele onde se desatam os nós e põe os nomes aos bois, ele regressa a Ítaca, ao encontro de Penélope, como justo vencedor, referência moral da comunidade. THE END.

THE END, nada! O argumentista desta história meteu uma valente patada! Onde está a caracterização do mundo alternativo que o nosso primeiro nos quis vender? Não dei por nada. Eu pensava que ele nos estava a situar na NOSSA realidade. Afinal, e não mencionado, estávamos era num mundo que muda em 3 semanas, onde não há erros sistémicos de governação, onde o protagonista é surdo a críticas, e cego a sinais de alarme, onde se negoceiam, sequestram e chantageiam as dívidas soberanas dos estados europeus. Um mundo onde todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros. Onde os bancos não são PMEs, nem grandes empresas, nem como o comum dos mortais, porque lhes perdoam uma fatia importante dos impostos. Onde se vão guardando trunfos na manga para poder negociá-los, em seu tempo, com os adversários, quiçá com o espectador, leitor, ouvinte. Este argumentista é um pantomineiro. À mulher de César não lhe basta parecer honesta. Por muito simpático que seja um vigarista (condição sine qua non), se o apanharmos, destempadamente, com a mão na caixa das esmolas, temos o direito, e o dever, de corrermos com ele à pedrada e ao pontapé!